sábado, setembro 27, 2003

Só.
Hoje, estou me sentindo só. Não por estar sózinho, não. É solidão mesmo. Daquela que dá frio, daquela que dói, daquela que tira a côr das coisas e põe tudo a preto e branco. Não. Põe tudo a preto.
Encontro algum refúgio e companhia nesta tela, neste teclado. E o texto vai surgindo. A preto. Sem outra mão para tocar, meus dedos tocam as teclas. Sem outros olhos para olhar, meus olhos olham pra tela.
Li alguns textos de Clarice Lispector esta tarde, no metrô, quando regressava a casa. Não me senti melhor. Me afundei mais um pouco. Escrita torturada, a dela. Solitária. Pedindo ajuda.
Ecos de casa vazia. Sinto ecos de casa vazia. Ou serei eu que estou vazio? Ou serei eu que tenho os ecos de tão vazio que estou?
Estou num corredor. Longo corredor de paredes nuas. Paredes nuas e portas fechadas. Que está para além das portas? Salas vazias, certamente. Escuras e frias. Como eu. Frias. Frio. Tenho frio. Estou frio. Talvez meu coração tenha parado. Besteira. Se tivesse parado não estaria escrevendo.
E escrevo para esquecer que estou só. Para aquecer o eu que está só.
Me deu um arrepio agora. Será o frio da sala? Ou será o inverno em mim? Parece que a neve está chegando não tarda...

terça-feira, setembro 23, 2003

De Moraes na rede...



...muito mais tempo, agora que as palavras do poeta circulam livres na net.
Confiram aqui ao lado a nova porta para o cantor da mulher, da amante, da vida...

sexta-feira, setembro 19, 2003

Rio


Alvíssaras!!! Saí do armário!
Depois de tanto tempo tendo por companhia a parede branca que me servia de janela, passei para o “campo de refugiados”, com mais seis pessoas.
Mas, o fundamental, é a janela... devolveram-me o rio!
Já tenho menos um motivo pra minha depressão...

Vinicius e Ney



Pegando nos comentários a meu blog do Cesariny, veio a memória dos "Secos & Molhados" e de Ney Matogrosso. E a minha primeira memória do grupo já tem quase 30 anos!... TV ainda a preto e branco e uma voz estranha. Mulher? Homem? Guri ainda, me causava confusão. Um homem cantando com aquela voz? Mas se era mulher, teria cortado os peitos? Eu ouvia, olhava, gostava, mas não entendia. E qual é a música na minha memória desse tempo?

A poesia é para ser dita ou para ser cantada. Creio que não há dúvida nisso. Lida fica meio sem graça porque um poema só está completo quando é escutado. Vinicius nos deu tudo: para além de escrever (claro!), disse seus poemas, cantou seus poemas, deu seus poemas a cantar. A poesia, com ele, era completa.

Pegando na música da memória, surge, pois,

"A ROSA DE HIROSHIMA

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Vinicius de Moraes"

Aproveitando ainda Vinicius, apenas mais um poema seu...

"A AUSENTE

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar..."

quinta-feira, setembro 18, 2003

Esclarecendo



A crónica do Arnaldo Jabor que eu menciono abaixo está aqui.

O poema original de Fernando Pessoa, ligeiramente modificado pelo Cesariny, é este:

"Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

Fernando Pessoa, 5/6-2-1931"

Esclarecidos?

quarta-feira, setembro 17, 2003

Para quem deixou escapar, recomendo a leitura do Jabor desta semana...

Cesariny



Ao ver a referência a Manuel Maria Barbosa du Bocage, lembrei-me de colocar aqui um dos poemas que ainda hoje o faz vivo no imaginário popular. Depois, pareceu-me demasiado óbvio. Decidi então não colocar.
Como gosto de Fernando Pessoa, eventualmente poderia cair bem aqui um dos seus poemas. Mas não me recordo de nenhum poema nesta onda bocagiana.
Cheguei então a Cesariny, Mário Cesariny de Vasconcelos. Este, pertence a uma classe especial de poetas: os vivos! Já não é jovem e fez parte do movimento surrealista português (apesar da ditadura, por aqui também tivémos surrealismo). Entende-se facilmente o fio condutor que me trouxe de Bocage até Cesariny através de Pessoa pelo nome do livro onde fui tirar o poema: "O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às Criancinhas Naturais e Estrangeiras por M. C. V.". Aqui, Cesariny, pegando em poemas e textos de Pessoa (e heterónimos), os transforma, os transfigura, os recria em novas formas.
E aqui segue o exemplo:

"É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que um tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d'ir urinar.

Isso eu o quiz dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
«O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é»
Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até).
...................................................................................................................
Também aquela do «outrora-agora» e do «ah poder ser tu
[sendo eu» foi um bom trabalho
Para continuar tudo co'a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.

M.C.V."

Para não ficarem com uma idéia errada do conteúdo do livro, aqui fica mais um poema do Cesariny:

"Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supôr o que dirá
Tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor - muito melhor! -
Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

M.C.V."

terça-feira, setembro 16, 2003

O principezinho



"XVIII

O principezinho atravessou o deserto e a única coisa que encontrou foi uma flor. Uma flor de três pétalas, uma florzita de nada...
- Olá, bom dia! - disse o principezinho.
- Olá, bom dia! - disse a flor.
- Onde é que os homens estão? - perguntou delicadamente o principezinho.
Uma vez, a flor tinha visto passar uma caravana.
- Os homens? Tenho a impressão que só há uns seis ou sete. Vi-os há uns anos. Mas nunca se pode saber onde é que estão. O vento empurra-os de um lado para o outro. Não têm raízes e isso faz-lhes muita falta.
- Adeus - disse o principezinho.
- Adeus - disse a flor."

Desde já, as minhas desculpas às quatro leitoras deste meu blog. Se ontem o Petit Prince surgiu no original foi apenas por dois motivos: a edição francesa foi a primeira que me veio à mão e, depois, o meu francês é demasiado fraco para me poder dar ao luxo de fazer tradução para os outros. Hoje, tendo redimir-me, utilizando o mesmo trecho a partir de uma edição portuguesa. Mas creio que algo se perdeu entre o original e a tradução...
Porquê a escolha deste capítulo? Abri o livro ao acaso e foi este o trecho que me surgiu. Gostei da sua ambiguidade e postei-o. Foi só isso (mas eu continuo achando que as coincidências não são fruto do acaso...).
Falando deste livro de Saint-Exupéry, acho que é uma estória que vai crescendo connosco. Não é livro que se leia apenas uma vez (há quanto tempo não o lêem?). A cada nova leitura, vamos descobrindo aquilo que nos tinha passado desapercebido em anteriores leituras. Sentimos as palavras e os episódios de forma diferente. Aqui, neste momento, confesso que é um livro que me faz chorar. Ou quando as lágrimas não chegam a escorrer pelo meu rosto, fica um nó na garganta que me obriga a fechar o livro e a respirar fundo uma, duas, três vezes... Pronto, agora está dito.
E já que estou numa de confissão, há também um filme (entre outros, mas não muitos) que me causa o mesmo efeito: "Cyrano de Bergerac", com o Gerard Depardieu. É numa cena quase no final do filme (quase no final da vida...), quando Cyrano visita Roxane e esta percebe que afinal, quem lhe escrevia as cartas, não era Christian mas sim seu primo, Cyrano, que a havia vistado diariamente nos ultimos tempos e nada havia dito...
E por aqui me fico porque já estou falando de mais...

segunda-feira, setembro 15, 2003

Le Petit Prince


"XVIII

Le petit prince traversa le désert et ne rencontra qu'une fleur. Une fleur à trois pétales, une fleur de rien du tout...
- Bonjour, dit le petit prince.
- Bonjour, dit la fleur.
Où sont les hommes? demanda poliment le petit prince.
La fleur, un jour, avait vu passer une caravane:
- Les hommes? Il en existe, je crois, six ou sept. Je les ai aperçus il y a des années. Mais on ne sait jamais où les trouver. Le vent les promène. Ils manquent des racines, ça les gêne beaucoup.
- Adieu, fit le petit prince.
- Adieu, dit la fleur."

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

domingo, setembro 14, 2003

Noite


Hoje anoiteceu mais cedo em Lisboa.
Aos poucos, no seu caminho para poente, o sol foi mudando de cor. Empalideceu primeiro. Depois, foi ficando alaranjado. Até que se tornou vermelho. Como se de seguida se fosse tornar cor de sangue, prenúncio óbvio de calamidades ou pragas inomináveis. Mas não. Foi desaparecendo até ficar completamente obnubilado. Noite. Os candeeiros da rua se acenderam. Mas algumas porções de céu ainda estavam azuis!

Hoje, o fumo dos incêndios de Mafra, a cerca de cincoenta quilómetros de distância, chegou à cidade. Primeiro, o cheiro a queimado. Um cheiro gostoso, de lareira de inverno, mas que num dia quente como o de hoje destoava por completo. Depois, o fumo. De início, como se fosse um fino véu, que mal se percebe mas que vai suavizando as sombras na calçada. Adensa-se depois e é como se fosse nevoeiro. Mas um nevoeiro rasteiro, que nos permite ainda ver o céu azul sobre nossas cabeças. É quando o sol vai baixando no horizonte que se dão as mudanças na sua cor. Vamos sentindo um ardor nos olhos e a cinza vai pairando em nosso redor.
Depois que os candeeiros se acenderam, a cidade ficou com um aspecto irreal. Os cones de luz pareciam estar suspensos, nunca chegando a alcançar o chão. A luz perdia-se no fumo...

Eu pensava que os incêndios já haviam terminado. Engano meu. Como se os dezoito mortos, as dezenas de casas e os cerca de 400 mil hectares floresta e mato (essencialmente, mas também terrenos cultivados) não tivessem sido suficientes, Setembro vai tentar alargar estes números. Espero que a solução para este problema não passe pela transformação do país no prolongamento do Sahara...

sábado, setembro 13, 2003

Vinicius de Moraes



Eu sei que estou parecendo pouco original. Ultimamente, só tenho falado pela boca dos outros. Mas isto é como se fosse a resposta a estímulos. Desta vez, o mote foi Vinicius. E a sua forma de cantar (e contar) a mulher.

Me acompanhem na sua viagem, na sua

"VIAGEM À SOMBRA

Tua casa sozinha - lassidão infinita dos devaneios, dos segredos. Frocos verdes de perfume sobre a malva penumbra (e a tua carne em pianíssimo, grande gata branca de fala moribunda) e o fumo branco da cidade inatingível, e o fumo branco, e a tua boca áspera, onde há dentes de inocência ainda.

És, de qualquer modo, a Mulher. Há teu ventre que se cobre, invisível, de odor marítimo dos brigues selvagens que eu não tive; há teus olhos mansos de louca, ó louca! e há tua face obscura, dolorosa, talhada na pedra que quis falar. Nos teus seios de juventude, o ruído misterioso dos duendes ordenhando o leite pálido da tristeza do desejo.

E na espera da música, o vaivém infantil dos gestos solenes de magia. Sim, é dança! - o colo que aflora oferecido é a melodiosa recusa das mãos, a anca que irrompe à carícia é o ungido pudor dos olhos, há um sorriso de infinita graça, também, frio sobre os lábios que se consomem. Ah! onde o mar e as trágicas aves da tempestade, para ser transportado, a face pousada sobre o abismo?

Que se abram as portas, que se abram as janelas e se afastem as coisas aos ventos. Se alguém me pôs nas mãos este chicote de aço, eu te castigarei, fêmea! - Vem, pousa-te aqui? Adormece tuas íris de ágata, dança! - teu corpo barroco em bolero e rumba. - Mais! - dança! dança! - canta, rouxinol! (Oh, tuas coxas são pântanos de cal viva, misteriosas como a carne dos batráquios...)

Tu que só és o balbucio, o voto, a súplica - oh mulher, anjo, cadáver da minha angústia! - sê minha! minha! minha! no ermo deste momento, no momento desta sombra, na sombra desta agonia - minha - minha - minha - oh mulher, garça mansa, resto orvalhado de nuvem...

Pudesse passar o tempo e tu restares horizontalmente, fraco animal, as pernas atiradas à dor da monstruosa gestação! Eu te fecundaria com um simples pensamento de amor, ai de mim!

Mas ficarás com teu destino."

quinta-feira, setembro 11, 2003

Mar, poesia e Amizade


Este blog hoje era destinado a ser dedicado apenas ao mar. Mas o último texto da Cacau, ali no Ponto Gemini (podem lá chegar clicando no Ponto G, aqui ao lado...), e todos os comentários que esse texto gerou, levou-me a descobrir hoje, num livro de Ademar Ferreira dos Santos, poeta que publicou este ano, com 50 anos de idade, o seu primeiro livro de título "Descansando do Futuro [reserva de intimidade]", o prefácio de Rubem Alves. E transcrevo de seguida o início do prefácio, a parte que fala sobre a Amizade:
"Tardia mas felizmente a tempo eu e o Ademar nos descobrimos amigos. Aconteceu sem que nos tivéssemos encontrado. Tornamo-nos amigos através da poesia. Foi a palavra que nos ligou. Bernardo Soares disse que arte é comunicar aos outros nossa identidade íntima com eles. Foi assim: sem nunca nos termos visto descobrimos, através da palavra, nossa identidade íntima.
A amizade é uma experiência curiosa. Amigos não se fazem. Amigos são descobertos. E quando descobrimos um amigo temos a sensação de que já éramos amigos desde sempre. Entendemo-nos sem precisar explicar. Como se já soubéssemos... Nisso a amizade se parece com a experiência amorosa. Fernando Pessoa escreveu a mais bela declaração de amor jamais escrita. "Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a achar-te quando te encontrei..." A amizade é assim também. O encontro é um reencontro, a descoberta do que já havia. A amizade já existia, à espera..."

Lendo este pedacinho de texto, vejo porquê, tendo começado a medo, continuo blogando: a descoberta de amizades...
Mas pareceria mal transcrever parte do prefácio e não falar do poeta. Do poeta, pouco sei. Mas posso falar do livro, dividido em quatro partes: Epígrafes, Mumuki, Inconfidências e Confissões, Circunstâncias.
Agora, transcreverei apenas algumas das Epígrafes:

"De um lado o silêncio
do outro a palavra
No meio quê?"

"Se fugis permanentemente de vós
perguntai-vos
onde vos ireis encontrar?"

"Há ideias e modos de pensar
que prejudicam muito mais a saúde
do que o tabaco"

"Ninguém tem a chave para o interior de nós
perdida para sempre com o cordão umbilical
Agora estamos fechados por fora
à espera apenas de que nos espreitem"

"Começo onde acaba a tranquilidade
e termino onde o mar começa
Com o nome aspiro
a uma inquieta imensidão".

Agora sim, o Mar. Com Sophia...

"O Búzio de Cós

Este búzio não o encontrei eu própria numa praia
Mas na mediterrânica noite azul e preta
Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais
Rente aos mastros baloiçantes dos navios
E comigo trouxe o ressoar dos temporais

Porém nele não oiço
Nem o marulho de Cós nem o de Egina
Mas sim o cântico da longa vasta praia
Atlântica e sagrada
Onde para sempre minha alma foi criada

Junho 95"

"Foi no mar que aprendi

Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela
Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos de espuma

Por isso nos museus da Grécia antiga
Olhando estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais viva
E respiro melhor como na praia"

"Harpa

A juventude impetuosa do mar invade o quarto
A musa poisa no espaço vazio à contra-luz
As cordas transparentes da harpa

E no espaço vazio dedilha as cordas ressonantes"

"Beira-mar

Mitológica luz da beiramar
A maré alta sete vezes cresce
Sete vezes decresce o seu inchar
E a métrica de um verso a determina
Crianças brincam nas ondas pequeninas
E com elas em brandíssimo espraiar
Em volutas e crinas brinca o mar"

E neste momento, com o céu noturno enluarado, onde Marte está namorando Selene, por aqui me fico...

segunda-feira, setembro 08, 2003

Apelido


Coisa terrível é um apelido. Cola-se a uma pessoa como uma segunda pele e dificilmente sairá. Normalmente, só será esquecido se em determinado momento surgir outra apelido que remeta o primeiro para o limbo.
O apelido surge fruto do momento, devido à argúcia de quem o cria, se multiplica no meio em que o indivíduo se insere, e substitui qualquer outro tipo de identificação. Para todos os efeitos, o indivíduo perde o seu nome e passa a ser o seu apelido. Isto é especialmente verdade nos tempos de escola.
Mas o tempo va i correndo. A vida nos separa e os contatos entre todos são cada vez menos. Até um dia.
Até um dia em que vemos o nosso antigo colega. Será que ele se lembra de nós? Será que ele nos viu? Chamo? Não chamo? Huummm, ele agora deve estar bem de vida: terno completo de bom corte, a gravata parece de seda, os sapatos estão engraxados. Chamo? Não chamo? Mas qual é mesmo o nome dele? Paulo? João? Pedro? Não me parece. Só vem o apelido à ideia. Lembro que surgiu quando ele partiu o dedo da mão esquerda (o médio? o anelar?). Mas não. Não chamo. Não fica bem. Com um ar respeitável assim, não fica bem. É. Vou ficar calado. Deixo-o passar. Afinal, "Pé-de-cabra" era outro, "long time ago"...

domingo, setembro 07, 2003

Coisas boas da Catalunha


Ainda me faltam mais alguns detalhes sobre Barcelona. Neste caso, alargo a toda a Catalunha. Falarei sobre as coisas boas que, aconchegando o estômago, por vezes também confortam a alma. Não falarei de sopas (apesar do texto lindo de Rubem Alves que recebi. Obrigado Dilma). Falarei sobre três especialidades, muito pouco complicadas de recriar: cremat (bebida), pa amb tomàquet (entrada) e crema catalana (sobremesa).

Cremat
Esta é uma bebida típica catalã, muito fácil de fazer, e que tem semelhanças com a "queimada" galega. É especialmente indicada para noites frias...
Pegue-se então em meio litro de rum branco, metade dessa quantidade de brandy ou conhaque, meio litro de café quente, oito colheres de sopa de açucar, uma casca de laranja, uma casca de limão, pau de canela. Mistura-se o rum, o conhaque, o açucar, as cascas e a canela num alguidar de barro. Com cuidado deita-se fogo à mistura. Sem queimar as mãos, vai-se mexendo. Quando se tiver reduzido a metade (mais coisa menos coisa), junta-se o café quente. Quando o fogo se apagar, serve-se ainda quente, também em canecas de barro.

Pa amb tomàquet (Pão com tomate)
Com esse nome, parece bem simples, não é? E é.
Pegue-se num pão grande e corte-se em fatias. Tostem-se ligeiramente essas fatias. Esfregue-se meio dente de alho na fatia de pão. Dependendo do tamanho do tomate, corte-se ao meio ou em quartos e esfregue também na fatia de pão (na prática, o tomate que deve estar bem maduro e sumarento é desfeito na fatia do pão). Depois, espalhe um pouco de sal a gosto. Regue finalmente com azeite. Está feita a base. Agora, pode pôr por cima tudo o que você quiser: fiambre, salame, queijo, etc.

Crema Catalana
Na prática, parece ser leite creme.
A receita que a seguir indico é traduzida do catalão. Espero estar entendendo tudo para não dar erro. Então é assim: de meio litro de leite, retirar um pouco para desfazer 20 gramas de maizena. Levar o restante leite a ferver com a casca de um limão e um pau de canela Assim que começar a levantar fervura, retirar do fogo. Noutra tijela, bater quatro gemas com 125 gramas de açucar, até fazer uma massa cremosa. Juntar o leite (já sem a canela e a casca) e continuar a bater. Juntar depois a maizena, passada por um coador fino para evitar os grumos. Continuar a bater à mão e levar ao lume, mexendo sem parar e evitando que levante fervura. Depois de espessar, retirar do lume e continuar a mexer, para evitar talhar. Colocar num prato de servir ou em pratos individuais. Deixar arrefecer à temperatura ambiente. Antes de servir, polvilhar com açucar e queimá-lo com um ferro bem quente. E é assim.

Bom apetite, porque a cultura catalã também se come.

sexta-feira, setembro 05, 2003

FDP


Para além do Verissimo, também me habituei a ler o Arnaldo Jabor. E esta semana, ele é demolidor. E universal nos seus conceitos. Nada de dicotomia esquerda/direita. As classificações vão muito mais além. E chegam até aos fdp's. E daqui chego a um poeta português, vivo (nem todos os bons poetas são poetas mortos...), que dá pelo nome de Alberto Pimenta. Para além de poeta, é também um "performer". Entre outras coisas, certa vez passou um dia numa jaula do zoológico, com a indicação no exterior (se bem me lembro) "Homo Sapiens".
Talvez possa ser etiquetado na classe dos "poetas malditos".
No tempo em que apenas existia a TV pública, com dois canais e ainda a preto e branco, quando ela se podia dar ao luxo de ser elitista, sem preocupações com "shares" de audiência nem ibope, teve um programa com o título emprestado de um livro de Teixeira de Pascoaes: "A Arte de Ser Português". Lembro muito pouco dos seus programas, mas recordo-me de um em que ia perguntando às pessoas se sabiam qual o sexo do automóvel que conduziam. As reações da pessoas eram variadas. Depois explicava que os automóveis também têm sexo. E pouco mais recordo...
Mas sobre os FDP, publicou em 1977 uma pequena obra a que deu o nome de "Discurso sobre o filho-da-puta, com notas do "Cisne Branco" em tradução do "Cisne Negro" (antecedido do seu PLANO GERAL e da sua BALADA DITIRÂMBICA)". Teve várias edições e foi até publicado no estrangeiro. No Brasil foi publicado pela editora Codecri, do Rio de Janeiro, em 1983.
Aqui segue a transcrição da balada ditirâmbica, balada esta recorrente em muitas noites de poesia, por vezes quase clandestinas, a que em tempos eu assistia.

"Balada ditirâmbica
do pequeno e do
grande filho-da-puta


I

o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filha-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem
grandes
e
filhos-da-puta
que nascem
pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem
uma pequena
visão das coisas
e mostra em tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o pequeno filho-da-puta.

todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os
grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.

é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande fillho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.

II

o grande filho-da-puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-put,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir um dia a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que já nascem
grandes
e
filhos-da-puta
que nascem
pequenos,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o grande filho-da-puta.

o grande
filho-da-puta
tem
uma grande
visão das coisas
e mostra em tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.

por isso,
o grande filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o grande filho-da-puta.

todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

dentro do
grande filho-da.puta,
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.

é o grande
filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o pequeno filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
o grande filho-da-puta vê
com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja, o grande filho-da-puta."


Para terminar, dois poemas de uma poetisa que, em 1999, recebeu o Prémio Camões: Sophia de Mello Breyner Andresen ou, simplesmente, Sophia.
Felizmente, também ela ainda viva, o que nos permite esperar mais poesia, mais sol, mais mar, que as suas palavras nos dão.

"Com fúria e raiva

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra."

"Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim."

terça-feira, setembro 02, 2003

Roubo


Roubaram-me o Tejo... Fiquei sem rio. Minha janela, agora, é uma parede branca.

O meu local de trabalho é junto ao Tejo, em plena Baixa Pombalina (parte da cidade de Lisboa reconstruída após o terramoto e maremoto de 1755). Quando este edifício foi feito, ainda D. Pedro não havia nascido... (claro, nem a corte pensava em ir para o Brasil. Às vezes penso mesmo se Portugal não seguiu junto com a corte, deixando aqui um retângulo na península com gente falando português só pra fazer pirraça aos castelhanos...). Continuando. Tinha a sorte incrível de ter uma janela larga, virada a poente, com vista sobre o rio e a sua margem esquerda. Na versão original, não era uma janela mas sim a bandeira de uma grande porta. Mas em certo momento, decidiram dividir os pisos em altura. De um piso, faziam dois. O material da contrução original vai resistindo, mas os acrescentos não duram tanto. Assim, tornou-se necessário levantar o soalho que já estava bastante ondulado e aqui e ali cedia. Levanta-se o soalho e vão surgindo as traves carcomidas e as madeiras podres. E o pó! Um pó fino que tudo cobre e em tudo pousa. E a tudo se cola: garganta, nariz, pele...
Os gabinetes onde estão levantando o soalho foram evacuados. E os desalojados tiveram de ser espalhados pelo espaço sobrante. Calhou-me uma arrecadação (ou quase). Tenho um porta de entrada (e, felizmente, saída também...). Sobre mim, as lâmpadas vão cintilando, o que me faz doer os olhos. A dor de cabeça não sei se é dos olhos ou se é do nariz (devido ao pó). Resumindo: tá complicado ter gosto em estar aqui. Acho que vou lá fora ver se o sol ainda está brilhando...

segunda-feira, setembro 01, 2003

Polaroids



1 - Vestal, de botas cardadas, entrando em carruagem de metrô.
2 - Saia branca, comprida, revelando, a contraluz, as longas pernas que recobre...
3 - Dois feijões germinando num algodão humedecido.
4 - Pilha de livros (1): "A Cerca Moura de Lisboa. Estudo histórico descritivo - 3ª Edição", de A. Vieira da Silva (Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1987); "Veinte poemas de amor y una canción desesperada", de Pablo Neruda (Alianza Cien, Madrid, 1994); "Dictionnaire des idées reçues", de Gustave Flaubert (Mille et une nuits, 2000); "Sonetos de Amor", de Luís Vaz de Camões (Princípio Editora, São Paulo, 1993); "Boa Companhia - Contos", vários autores (Companhia das Letras, São Paulo, 2003); "A Trilogia de Nova Iorque", de Paul Auster (edição do jornal Público, Lisboa, 2003); "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury (edição do jornal Público, Lisboa, 2003).
5 - Pilha de livros (2): gibis da Magali. E do Chico Bento. E da Mônica. E do Cascão.
6 - O mar assaltando a praia e levando a areia.
7 - Peixe fresco, alinhado, pronto pra ser escolhido e saltar para as brasas do carvão.
8 – Marte, no céu noturno, brilhando isolado.
9 – Fila, sábado de manhã, na banca dos jornais, pra comprar o semanário Expresso.
10 – Picolé de chocolate pingando em camiseta branca.