domingo, novembro 16, 2003

Curiosidades



Hoje, duas curiosidades. Dois poemas. Um de Fernando Pessoa. Outro, de Álvaro de Campos (também ele Fernando Pessoa mas afinal diferente porque outro...). O primeiro poema foi dito por Daniela Mercury num show especial do "Altas Horas", programa de Serginho Groisman, feito com a Sinfónica de São Paulo. O poema seguinte, segue as palavras de Baudelaire ontem postadas pela Mônica no Ponto Gemini (para entenderem, cliquem no Ponto G aqui do lado...). Mas Álvaro de Campos não segue Baudelaire. Creio até que serve de contraponto ao poema. Opiniões?


"A criança que ri na rua, (4-10-1934)

A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor,
Ainda que o amor seja mudo."

Fernando Pessoa

"CARNAVAL

A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira...

A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões atrás da alegria
Duma plebe farsante e copiosa...

Cada momento é um carnaval imenso
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisto maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso

De mais... Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver onde é que tem o pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça...

Automóveis, veículos, (...)
As ruas cheias, (...)
Fitas de cinema correndo sempre
E nunca tendo um sentido preciso.

Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,
Cambaleio nas minhas sensações,
Sinto uma súbita falta de corrimões
No pleno dia da cidade (...)

Uma pândega esta existência toda...
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o crente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda...

E contudo eu estou como ninguém
De amoroso acordo com isto tudo...
Não encontro em mim, quando me estudo,
Diferença entre mim e isto que tem

Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo...

Que tipos! Que agradáveis e antipáticos!
Como eu sou deles com um nojo a eles!
O mesmo tom europeu em nossas peles
E o mesmo ar conjuga-nos

Tenho às vezes o tédio de ser eu
Com esta forma de hoje e estas maneiras...
Gasto inúteis horas inteiras
A descobrir quem sou; e nunca deu

Resultado a pesquisa... Se há um plano
Que eu forme, na vida que talho para mim
Antes que eu chegue desse plano ao fim
Já estou como antes fora dele. É engano

A gente ter confiança em quem tem ser...
(...)

Olho p'ró tipo como eu que ai vem...
(...)
Como se veste (...) bem
Porque é uma necessidade que ele tem
Sem que ele tenha essa necessidade.

Ah, tudo isto é para dizer apenas
Que não estou bem na vida, e quero ir
Para um lugar mais sossegado, ouvir
Correr os rios e não ter mais penas.

Sim, estou farto do corpo e da alma
Que esse corpo contém, ou é, ou faz-se...
Cada momento é um corpo no que nasce...
Mas o que importa é que não tenho calma.

Não tenciono escrever outro poema
Tenciono só dizer que me aborreço.
A hora a hora minha vida meço
E acho-a um lamentável estratagema

De Deus para com o bocado de matéria
Que resolveu tomar para meu corpo...
Todo o conteúdo de mim é porco
E de uma chatíssima miséria.

Só é decente ser outra pessoa
Mas isso é porque a gente a vê por fora...
Qualquer coisa em mim parece agora"

Álvaro de Campos

Músicas, músicas, músicas


As músicas também têm estações. Claro, existem as estações de rádio onde as podemos escutar, mas não estou me referindo a essas. Estou me referindo ao Inverno, à Primavera, ao Verão, ao Outono...

Assim, existem músicas de Outono/Inverno e músicas de Primavera/Verão. Podemos escutar músicas de Inverno em pleno Verão e vice-versa. As músicas não estão diretamente ligadas à estação do ano, mas sim à estação do nosso coração, à estacão do nosso interior, ao nosso "inner self"...
Mas que quero eu dizer com isto? Um exemplo prático e próximo da realidade (apesar das exceções): samba é música de Verão e Bossa Nova é música de Outono. As músicas de Inverno as ouvimos em momentos de maior intimidade, de maior solidão. E pode ocorrer uma de duas coisas: vamos em busca da música porque sentimos a necessidade de a conjugar com nosso estado de espírito ou é a própria música a induzir esse estado.
Mas porquê toda esta conversa agora? Ontem peguei numa fita ao acaso, que já havia gravado faz tempo. Como eu nunca coloco o alinhamento das músicas na cartolina, não sabia muito bem o que iria ouvir. A única indicação que tinha era o título que tinha na lombada (costumo dar título às minhas fitas, quando são gravadas com algum propósito): "Canções Atlânticas".
[como trilha sonora, enquanto escrevo, escuto Pink Floyd e o seu trabalho de 1975 (xi, como o tempo corre...) "Wish You Were Here"]
Música após música, senti o Inverno descer até mim. O frio chegando e a vontade de encontrar calor, aquele calor bom do Inverno, que se encontra junto a alguém, partilhando um cobertor, um bom chocolate quente, a visão de uma lareira com lenha crepitando. Das que ouvi, destaco desde logo uma música, dos Lamb: "Gorecki". Já "Merry Christmas, Mr Lawrence", de Riuichi Sakamoto é música outonal.
Mas as classificações “estacionais” de cada canção ou melodia dependem da sensibilidade de cada um. Para uns o Inverno pode ser Primavera ou Verão, para outros o Verão pode ser Outono ou Inverno. Depende da própria música, do primeiro momento em que ela é escutada, de outro momento em que ela é novamente escutada, de com quem ela é escutada e partilhada, de quem a dá a partilhar, de...

Pego agora emprestadas mais algumas palavras de Rob, o personagem principal de “Alta Fidelidade”:
“Vêem [ele fala assim direto com o leitor], os discos me ajudaram a ficar apaixonado, sem dúvida. Oiço algo novo, com uma mudança de acorde de derrete minhas entranhas, e antes que eu perceba estou procurando alguém, e antes que eu perceba encontro. Me apaixonei por Rosie (...) após me apaixonar por uma canção dos Cowboy Junkies: escutei escutei escutei, e ela me fez sonhador, e eu precisava de alguém com quem sonhar, e a encontrei, e... (...)”

E antes de acabar, as palavras de Roberto Damatta que utilizou como mote o último trabalho de Rod Stewart “The Great American Songbook” (que inclui composições deCole Porter, George e Ira Gershwin, Jerome Kern eDorothy Fields, entre outros):
“Não cabe analisar os motivos do cantor. Mas cabe, sim, falar do poder mágico dessas canções que traduziram tanto do seu tempo (...), quanto a tentativa de todos os artistas de capturar a nossa perene frustração diante da finitude, das agruras do esquecimento e da indiferença, o desejo inoportuno, o fato de que todos somos passageiros e que, em certos momentos, encontramos a companhia perfeita, descobrimos a sintonia certa e vivemos plenamente a magia do encantamento, da paixão e do amor.
Em contraste com a chamada «música erudita», a «música popular» leva à imitação. Muitos compositores, sobretudo os que produziam nos Estados Unidos, uma sociedade onde o sexo era reprimido por um puritanismo sufocante, tinham plena consciência de que suas canções eram veículos para todo o tipo de diálogo. Do que fala das banalidades do quotidiano (...) como prova de amor e, diríamos nós, de saudade (como na música These Foolish Things); à tentativa de reter o momento mágico da presença da pessoa amada em todo o seu brilho e beleza erótica (quando diz: no dia em que eu estiver terrivelmente deprimido e, como o grande Manuel Bandeira, com vontade de me matar, eu vou pensar na sua aparência nesta noite, como na música The Way You Look Tonight).
(...) Certas melodias têm tanta vida que obrigam à sua manifestação, mesmo pelos maus cantores. Eles não cantam nada, mas são, sim, cantados por essas grandes músicas.”

Boas músicas...

quinta-feira, novembro 13, 2003

Meia-idadismo


O meu tema de hoje surgiu meio por acaso. Comentei com um amigo meu um texto que havia lido e que ele desconhecia. Pois bem, o texto é de Edson Athayde e a crônica que ele escreveu tem o título que coloquei: "Meia-idadismo".
Mas antes, quem é Edson Athayde? Brasileiro, ou melhor, nascido no Brasil, vivendo em Portugal há doze anos, publicitário, mantém uma crônica semanal num dos suplementos de sábado de um diário de referência aqui de Portugal. O jornal é o Diário de Notícias e o suplemento (ótimo suplemento!) é o DNa (é, se escreve assim mesmo). Como título geral de suas crônicas deu o nome de "Os trintões".
Esta semana, a questão era a meia-idade. Quando chegamos à meia-idade? Passo agora a palavra ao Edson:

"(...) Para facilitar o auto-reconhecimento do seu meia-idadismo, reuni uma série de indicações (...) que permite que você descubra se está naquele ponto da estrada em que ainda não vê o fim da linha mas que já não dá para voltar para trás. Portanto, você é uma pessoa de meia-idade quando:
- Em vez de ir escondido dos pais ao concerto dos Rolling Stones, passa primeiro na casa deles para deixar as crianças
- Homem: presta mais atenção a uma mulher quando ela fala, do que quando anda
- Mulher: consegue se divertir mais ao lado de um homem que debaixo dele
- Consegue passar horas na cama com a sua parceira só a conversar
- Relê os clássicos e descobre que eles não eram tão chatos assim
- A maioria dos telefonemas que recebe em casa são para os seus filhos
- Tem mais cabelos na toalha que na cabeça
- Troca a cerveja por um bom vinho
- Dá preferência aos vinhos tintos por causa dos flavonóides
- E o pior: sabe o que são os tais flavonóides
- Assistiu à chegada do homem à Lua
- Já fez sexo sem camisinha sem ter medo de apanhar AIDS
- Para as mulheres: a única maneira de alguém pedir para você fazer um topless é quando vai fazer uma mamografia
- Para os homens: a memória começa a ir embora e a única coisa que ainda consegue reter com facilidade é água"

A lista é ainda mais longa, mas creio que dá pra ter uma idéia sobre se você já chegou ou não à sua meia-idade... E acho que regressarei aos textos do Edson noutras ocasiões.

segunda-feira, novembro 10, 2003

Canções e palavras


A música chega até nós de vários modos, ou melhor, apreendemos a música de diversos modos: ou somos influenciados pelo ritmo, ou somos influenciados pela melodia, ou somos influenciados pela voz. Basicamente. Chega uma altura, porém, em que passamos a tomar atenção às palavras que vestem as canções. Ou melhor ainda: as palavras que vestiam as músicas passam a ser palavras vestidas pela música. Aí, tudo se modifica. Ouvimos as palavras, interiorizamos as palavras e a música passa a ser o pretexto para repetirmos essas palavras uma e outra e outra vez, vezes sem conta.
Algo se passa a partir do momento em que as palavras passam a fazer sentido. Deixa de ser uma questão de cuca e de corpo. Passa também a ser uma questão de coração. Surge então a dúvida: eu gosto da canção pela música ou gosto da canção pelo poema?
Existe um livro, de título original “High Fidelity” (Alta Fidelidade), de Nick Hornby, que deu em filme, com o mesmo nome, e cujo director não recordo quem é, mas que tem o John Cusack como protagonista, onde a música desempenha papel principal. A vida se cola com as músicas e as músicas se colam à vida. Como se todos tivéssemos a nossa trilha sonora que nos vai acompanhando em todas as acções. Aí, o protagonista, logo no início, estabelece um Top 5 de garotas que, num ou noutro momento, romperam com ele. A número quatro lhe dá motivos para reflexão: “O que veio primeiro, a música ou o me sentir destroçado [após romper com a número quatro]? Ouvia música porque estava destroçado? Ou estava destroçado porque ouvia música? (…) As pessoas se preocupam com garotos brincando com armas e adolescentes vendo vídeos violentos; nos assustamos que eles sejam tomados por uma cultura de violência. Ninguém se preocupa sobre garotos escutando milhares - literalmente milhares - de canções sobre corações partidos e rejeição e dor e depressão e perda. As pessoas mais infelizes que conheço, do ponto de vista romântico, são as que mais apreciam a música pop; e eu não sei se foi esta música pop que causou esta infelicidade, mas eu sei que eles têm escutado mais músicas tristes do que têm vivido as suas vidas infelizes”.
Algumas páginas mais à frente, nova indicação sobre o seu relacionamento com as músicas. Diz ele: “Para mim, fazer uma fita é como escrever uma carta - há muito apagar e repensar e começar de novo (...) Uma fita com uma boa compilação, assim como romper com alguém, é algo difícil”.
Aqui, volto eu ao início. A partir de que momento começamos a usar as canções como palavras que não dizemos mas que gostaríamos de dizer? Ou melhor, a partir de que momento as canções deixam de ser simples música e passam a expressar o que sentimos? Quando temos alguém a quem desejamos expressar esses nossos sentimentos? Quando temos alguém com quem possamos partilhar esses sentimentos? Quando desejamos ter alguém com quem possamos partilhar esses sentimentos? Quando pensamos que há alguém que pode entender as palavras das canções com nós as entendemos?
Opiniões?

sexta-feira, novembro 07, 2003

Joaquim Pessoa x 2



Revelando mais dois poemas de Joaquim Pessoa:

" Cavalo de Palavras

Cavalo de palavras quem me agarra
quem aparta de mim esta saudade?
Quem fez da minha voz uma guitarra
tocada pelos dedos da verdade?

Cavalo de palavras quem me dera
poder erguer a voz. Calar o pranto.
Trazer no meu poema a primavera
por dentro duma flor de verde espanto.

Cavalo de palavras meu amigo
meu soneto da mágoa mais acesa
pelas praias do sangue vou contigo

percorrer esta língua portuguesa
procurando o lugar que é o abrigo
das enormes gaivotas da tristeza."

"Não Vou Pôr-te Flores de Laranjeira no Cabelo

Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo
nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.

Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.

Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre."

quarta-feira, novembro 05, 2003

Vinicius e Botto



Hoje, dois poemas pequeninos, o primeiro de Vinicius e o segundo de António Botto. De Botto, poeta de escândalos e polêmicas, contemporâneo de Pessoa, falarei noutra altura.
Em minha tristeza, falam os poetas:

- Fala Vinicius

"A ESTRELA POLAR

Eu vi a estrela polar
Chorando em cima do mar
Eu vi a estrela polar
Nas costas de Portugal!

Desde então não seja Vênus
A mais pura das estrelas
A estrela polar não brilha
Se humilha no firmamento
Parece uma criancinha
Enjeitada pelo frio
Estrelinha franciscana
Teresinha, mariana
Perdidada no Pólo Norte
De toda a tristeza humana."


...e agora Botto

"Chora a amante esquecida,
Chora quem vai barra fora;
- Quem não chorou nesta vida
Se o próprio mar também chora?
Sim; tudo acaba num ai,
Num silêncio, num olhar,
Ou numa lágrima triste!
- Nem já sei se te beijei,
Nem me lembro se me viste...
É isto, apenas. O mais
É mentira e fantasia...
- Se a vida não fosse choro,
o que é que a vida seria?"

sábado, novembro 01, 2003

Plágio



O texto que se segue é um plágio. E isto porque desconheço o autor da estória. Recebi por e-mail como um reenvio, daqueles mails que vão saltando de caixa do correio em caixa do correio e que numa hora podem cobrir todo o planeta... Leiam primeiro a estória e falamos da moral da mesma no final:

"Havia um cego sentado na calçada, com um boné a seus pés e um pedaço de
madeira que, escrito com giz branco, dizia:
"Por favor, ajude-me, sou cego"
Um publicitário que passava em frente a ele parou e viu umas poucas moedas
no boné. Sem pedir licença, pegou o cartaz, virou-o, pegou o giz e escreveu
outro anúncio. Voltou a colocar o pedaço de madeira aos pés do cego e foi
embora.Pela tarde o publicitário voltou a passar em frente ao cego que pedia
esmola. Agora, o seu boné estava cheio de notas e moedas. O cego reconheceu
as pisadas e lhe perguntou se havia sido ele quem reescreveu seu cartaz,
sobretudo querendo saber o que havia colocado. O publicitário respondeu:
"Nada que não esteja de acordo com o seu anúncio, mas com outras palavras".
Sorriu e continuou seu caminho. O cego nunca soube, mas seu novo cartaz
dizia:
"Hoje é Primavera, e não posso vê-la".
Mudemos a estratégia quando não nos acontece alguma coisa."

Afinal, o que aconteceu a quem? Bem, este publicitário só em estória mesmo, porque aparentemente saiu sem tirar vantagem. Eventualmente, seu ego deve ter ficado bem maior porque sua frase deu sucesso. O cego, bem, ele ganhou mas sem saber como. Se chover e o giz se apagar, continuará escrevendo simplesmente que é cego. E já vimos que isso é pouco lucrativo. Pensando naquela estória chinesa, lhe deram o peixe mas se esqueceram de o ensinar a pescar.

Será que afinal que a moral está realmente na mudança da estratégia? Acho que sim, mas nem sempre nós a conseguimos enxergar. E os amigos servem, também, para fazer luz sobre o que deve ser mudado. Mas é minha conclusão é diferente: o importante, é dar poesia aos outros. E não estou falando no sentido de ofertar poemas. Estou me referindo a ver e a fazer ver com os olhos do coração.

Ou será que não é nada disto que estou escrevendo e entendi tudo errado?