quarta-feira, junho 15, 2005

Hoje, a edição do Diário de Notícias não tinha contracapa: tinha duas capas. De um lado, ocupando toda a página, o rosto de Álvaro Cunhal. Do outro lado, virando o jornal, nova capa, desta vez com o rosto de Eugénio de Andrade.
Praticamente, todo o jornal era a evocação destas duas figuras.
E foi num pequeno texto de Eduardo Pitta que me recordei: Al Berto morreu também, neste mesmo dia, há já oito anos. Parece que o 13 de Junho, para além do Santo casamenteiro, também deveria celebrar a poesia. Pelo menos, a portuguesa. Nasceu Fernando Pessoa. Morreram Al Berto e Eugénio de Andrade. Mais alguém que eu tenha esquecido?
Fica aqui um poema de Al Berto:

"INCÊNDIO

se conseguires entrar em casa e
aalguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra da cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha - não te assustes

são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão"

terça-feira, junho 14, 2005

Estes últimos dias estive um pouco arredado das notícias e foi hoje, por acaso, enquanto bebia um café num botequim, que soube que havíamos perdido um poeta, o poeta: Eugénio de Andrade.
Deixo aqui as suas palavras...

"EM LISBOA COM CESÁRIO VERDE

Nesta cidade, onde agora me sinto
mais estrangeiro do que um gato persa;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver as gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também,
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu já sei bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua."

segunda-feira, junho 13, 2005

Ainda o tempo. Mas hoje, sem Ferré.
Ontem, no suplemento Mil Folhas do jornal "Público", na rubrica "Vale e pena traduzir", Desidério Murcho faz referência à obra "The Philosophy of Time", organizada por Robin Le Poidevin e Murray MacBeath e publicada pela Oxford University Press.
Eu sei que "não há mais metafísica no mundo senão chocolates" e que "a metafísica é uma consequência de estar mal disposto", conforme refere o senhor Engenheiro Álvaro de Campos, mas achei curiosas estas coisas que os filósofos contemporâneos pensam sobre o tempo. Para os outros, nunca sobra ou corre lento. Para eles, existem teorias flexionadas e teorias não flexionadas.
Há quase 100 anos (em 1908), o senhor McTaggart, resumidamente, afirmou que: 1) o tempo envolve mudança; 2) só as formas flexionadas de expressão podem exprimir a mudança; 3) mas as formas flexionadas de expressão envolvem contradições. Logo, o que concluir? Que o tempo é irreal... O grupo das teorias flexionadas aceita a premissa 2 mas recusa a 3. Os das não flexionadas aceitam a 3 mas recusam a 2.
Se segue depois outra questão: o que é existir no tempo? Ao longo de nossas vidas, existimos só parcialmente em cada um dos dias que vivemos? Ou será que existimos completamente em cada um desses dias? Ou seja, quando conhecemos alguém, será que estamos conhecendo essa pessoa na totalidade? Ou estamos apenas conhecendo essa pessoa no fragmento do total que é esse momento? Davis Lewis (1941-2001) defendia que a cada dia, apenas estamos perante um "segmento temporal" desse sujeito. A essa perspectiva se dá o nome de "perdurabilismo". Por oposição, o "durabilismo" defende que os particulares existem completamente em cada momento do tempo.
Parece que existe ainda uma terceira questão central: poderá o tempo existir sem mudança? Os absolutistas dizem que sim. Os relacionistas defendem que o tempo não é coisa alguma além da mudança: não havendo mudança, não há tempo.
Para reflexão em dia de Santo Antônio...
Já o mestre Caeiro dizia que "há metafísica bastante em não pensar em nada".
E por falar nisso, em 1888 nascia aqui em Lisboa, no Largo de São Carlos, Fernando Antonio Nogueira Pessoa. Só para recordar...

domingo, junho 12, 2005

Quando eu era mais novo (muito mais novo!), achava que não tinha idade para ouvir Léo Ferré. Ou Serge Reggiani ou Georges Moustaki, por exemplo. Um dos pecados principais era o fato de cantarem em francês. Tudo o que não fosse cantado em inglês (ou em português) não era para o meu entendimento de então. E além disso, as músicas não se podiam trautear, não tinham refrão simples de repetir. Achava eu que era música, que eram canções, para trintões.
Neste momento, já passei a fase do trintão. Comecei a entender francês. E começo a descobrir estes "cantautores". Mas antes passei por Rimbaud, Verlaine, Baudelaire. Mesmo Victor Hugo e até Proust (não, não foi a "Procura"... esta será descoberta através da tradução do Pedro Tamen...).
Há uma semana que sou perseguido (novamente) por uma canção de Ferré (lui même...): "Avec le temps". Se fosse em português, seria um fado, certamente.
Esta música me perturba. Me dá um nó na garganta e deixa meus olhos úmidos.
Porquê? Porque é o tempo. É a memória. É o esquecimento. É a morte...
"Avec le temps, tout s'en vas"
É a perda. São as dores de crescimento que não param, mesmo quando a puberdade já é algo tão longínquo quanto a construção das pirâmides...
Avec le temps...
O poema, de Ferré, aqui fica...

Avec le temps
"Avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
on oublie le visage et l'on oublie la voix
le cœur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller
chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
l'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie
l'autre qu'on devinait au détour d'un regard
entre les mots, entre les lignes et sous le fard
d'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit
avec le temps tout s'évanouit

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'as un' de ces gueules
à la gal'rie j'farfouille dans les rayons d'la mort
le samedi soir quand la tendresse s'en va tout' seule

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
l'autre à qui l'on croyait pour un rhume, pour un rien
l'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux
pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous
devant quoi l'on s'traînait comme traînent les chiens
avec le temps, va, tout va bien

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
on oublie les passions et l'on oublie les voix
qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu
et l'on se sent glacé dans un lit de hasard
et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard
et l'on se sent floué par les années perdues- alors vraiment
avec le temps on n'aime plus"

sábado, junho 11, 2005

Hoje foi mais um dia de Feira do Livro.
Mas antes, uma passagem pela exposição de Xana, na Culturgest.
Isto, enquanto ainda temos os jacarandás em flor. Coisa linda... Por sorte, existem muitos ali no Campo Pequeno. Infelizmente, o espetáculo não durará muito mais tempo, pois as flores já começam a cair. E muito...
A minha filha adorou a exposição. Muitas formas geométricas, muita cor. Quer repetir...
Na Feira do Livro, aproveitei a presença de António Torrado e tive direito a uma obra autografada: o volume 2 dos "Histórias Tradicionais Portuguesas Contadas de Novo". Que têm estes livros (são já três volumes) de especial? São escritos para ler em voz alta. Para quem lê é ótimo, porque cria a ilusão a quem escuta que estamos mesmo contando uma estória. A outra vantagem, é a de utilizar vocabulário que, para uma criança, é novo. Assim, se enriquece quem lê e se enriquece quem escuta.
Falando um pouco com o autor, ele referiu ainda que tem um site com 366 estórias, que também podem ser lidas e escutadas (para além de outras coisas, mas confesso que ainda não fui lá espreitar...). Fica aqui o convite, para quem quiser.
Mas o pretexto para a minha ida ao Parque Eduardo VII foi mais prosaico: comprar algodão doce. Já com seis anos, minha filha nunca tinha provado. Pois bem: provou, e não gostou. Ainda bem! Pelo que paguei (2 euros!!!), considero-me roubado! É preferível um sorvete ou um picolé...
Ah! Está provado que enfrentamos uma seca mesmo. Durante todo o período da feira (que vai encerrar na 2ª feira, dia de Santo Antônio), não choveu, como é de tradição, um único dia!
A situação está grave mesmo.

quinta-feira, junho 09, 2005

Contaminação
Deixei o cinema contaminar a literatura.
Depois da referência ao "The Maltese Falcon" no "Oracle Night" do Paul Auster, não descansei enquanto não li. Foi complicado encontrar a obra de Dashiell Hammett. Nem em português consegui encontrar. Passaram-se os meses e, finalmente, surgiram vários livros dele (Hammett, claro). Este "Maltese Falcon" é da Orion, editora londrina, incluído na coleção "crime masterworks".
Lá estava Sam Spade. "Samuel Spade's jaw was long and bony, his chin a jutting v under the more flexible v of his mouth. His nostrilscurved back to make another, smaller, v. His yellow-grey eyes were horizontal. The v motif was picked up again by thickish brows rising outward from twin creases above a hooked nose, and his pale brown hair grew down - from high flat temples - in a point on his forehead. He looked rather pleasantly like a blond satan." Esta é a descrição feita por Hammett. Quem é que eu vejo? Bogart. Humphrey Bogart. Quem oiço nos diálogos? Bogart.
Bogart é Sam Spade e não há volta a dar...
Escrito em 1929, John Huston transformou as palavras em imagens em 1941, nos estúdios da Warner.
E ao longo do livro, sempre as imagens. Porque é mesmo isso que parece: o guião de um filme. Um livro escrito para ser visto.
Irremediavelmente, o cinema, aqui, contaminou a literatura...