segunda-feira, outubro 27, 2003

Pessoa, mas Joaquim



Pessoa não é só Fernando. Hoje, apresento um poema de Joaquim Pessoa. Um poema que me acompanha há muitos anos...

"EU SEI, NÃO TE CONHEÇO, MAS EXISTES

Eu sei, não te conheço, mas existes.
Por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas nada, deixa-me inventar-te.
Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
Tenho feito amor de muitas maneiras
docemente,
lentamente,
deseperadamente,
sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim, que é em mim que devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti
que eu amo."

terça-feira, outubro 21, 2003

3 polaroides



1. Sol poente pintando a ouro os trilhos do bonde .
2. Avião sublinhando nuvens no céu.
3. Sol lançando prata sobre o rio.

domingo, outubro 19, 2003

90 anos


Se fosse vivo, ou melhor, se estivesse entre nós, corrigindo ainda, se corpo e espírito ainda estivessem unidos, faria hoje 90 anos Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes. Quem? Vinícius de Moraes...
Ele está vivo, enquanto for lido e ouvido. Está entre nós, enquanto permanecer em nós sua memória.
Dele, de sua poesia, disse outro poeta vivo, Carlos Drummond de Andrade: "Eu acredito que a poesia dele sobreviverá, independente de modas e teorias. Porque responde a apelos e necessidades de todo o ser humano. Vinicius passou a vida preocupado, à sua maneira, usando meios próprios de expressão, com o problema do destino e da finalidade do homem."
Combatendo a minha amnésia de datas, e celebrando este dia, aqui segue seu "Soneto de Aniversário", a partilhar por todos os amantes, isto é, aqueles que amam e são amados:

"Soneto de Aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece."

E agora, enquanto escuto Toquinho e Chico Buarque cantando seu "Samba prá Vinícius", ergo meu copo com whisky e, tocando no copo do poeta, sorrio e digo: Obrigado...

segunda-feira, outubro 13, 2003

Velas


Desde que partilhei o texto de Rubem Alves aqui no blog, duas coisas sucederam. Não, três: tive o prazer de ter mais pessoas visitando meu blog, fiquei pensando na chama das velas e tentei comprar o livro de Bachelard.
Quanto ao livro de Bachelard, apenas o encontrei em francês. "La flamme d'une chandelle". Como o vocabulário utilizado me pareceu suficientemente acessível, comprei-o. Em português, talvez esteja editado pela Martins Fontes. Como eu não sou barra em francês, a leitura segue de forma lenta, estando ainda no primeiro capítulo. Mas logo o "avant-propos" (o prólogo) merece leitura atenta. Aventuro-me agora como tradutor:
"A chama, entre os objectos do mundo que apelam ao devaneio [ou ao sonho, não sei bem como traduzir], é um dos maiores operadores de imagens. A chama nos força a imaginar. Deante de uma chama, logo que se sonha, o que se percebe não é nada comparado com o que se imagina".
Espero não ter traído muito o que o autor realmente escreve...

E daqui decorre (da chama da vela) um dos mecanismos recentemente por mim criados na luta contra a ansiedade: pensar na chama duma vela. Apenas na chama. Uma chama pequena, mais ou menos amarelada, dando um pouco de luz e algum calor. Penso nessa chama, ou em representações dessa chama, com a luz e com a sombra, e passo a me sentir mais sereno. Acho que é mesmo isso. Serenidade.

Isso também resulta com fumo. Tanto de um pau de incenso como de um cigarro. Na ausência de vento, gosto de ver o fumo subir, bem direito. E algures na sua subida, começar a se enrolar. E depois voltar a ficar direito. E, dentro de uma sala, ver o fumo se espalhando a meia altura, como se fosse um líquido, um pequeno mar, que ondula ao menor movimento do meu corpo. E da chama da vela, cheguei à idéia de mar. Com pouco esforço, chego aos veleiros. Mas aí, a serenidade é apenas aparente...
Regressando à chama da vela, alcanço a serenidade pensando nessa pequena ilha de luz que destrói a escuridão. Não por completo, é certo, mas o suficiente para garantir que o negrume pode desaparecer...

Conforme for lendo o livrinho de Bachelard, tentarei ir dando conta das descobertas que irei fazendo.

Quanto ao acréscimo de visitas, têm uma responsável diretamente identificável: Deize, editora do Rosa Choque. Chegam lá entrando aqui na coluna da esquerda onde vêem "brinque com as cores...".
Obrigado por seu marketing. Espero não ter defraudado as expetativas por si criadas em seus leitores...

domingo, outubro 05, 2003

Partilhando a Primavera



Partilhei meu Inverno. Logo me enviaram quentes brisas de Primavera para afastar o frio.
A essas brisas acho que posso chamar afeto... E no meio de toda esta aparente impessoalidade digital, eletrônica, o que quiserem chamar, descobri uma rede de afetos. E isso eu agradeço!
Uma das brisas de Primavera chegou por uma amiga (obrigado Dilma! E não quero esquecer a Lilia nem a Deize...). Mas é sobre esta brisa especial que quero falar. Foi um texto de Rubem Alves sobre a Solidão. Não transcrevo aqui todo o texto, mas da sua leitura passei a ter uma visão diferente daquilo a que chamava solidão.

O texto tem por título "A solidão amiga" e começa deste modo:
"A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...

Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, "parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis". A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: "Como se comporta a Sua Solidão?" Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida".

Aqui, eu interrompo um pouquinho. Gosto de velas. Gosto da chama das velas. Da mansidão (como ele refere no texto) da sua luz, por vezes incerta, e que faz as sombras dançarem. Adolescente, por vezes apagava o candeeiro elétrico da secretário e acendia uma vela. E escrevia. Encerrado dentro daquele casulo de luz, ia enchendo meu caderno com as bobagens que iam cruzando em minha cabeça. Ainda hoje, mesmo sem escrever, gosto de sentir o aconchego da vela. Reduz o espaço de um quarto ou de uma sala a uma dimensão mais humana, à nossa dimensão.

E a questão dos afetos, que eu sinto, estará ligada com a comunhão que Rubem refere? Esta comunhão ligada à ausência, à distância?

Mas retomemos o texto: "(...) Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:

"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!"

(...) O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. (...) A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira. (...)"

Aqui termino a minha transcrição. Conclusão: quando o Inverno chega, há que vivê-lo. Inteiro. Porque sem um bom Inverno, a Primavera não será bem sentida...