quarta-feira, dezembro 31, 2003

Antes de 2k4



Antes que seja dado como desaparecido, meu último post antes de 2004... antes de partir para Pasárgada (um dos votos para o próximo ano...)

E acabo mesmo com Manuel Bandeira:

"Marinheiro triste

Marinheiro triste
Que voltas para bordo
Que pensamentos são
Esses que te ocupam?
Alguma mulher
Amante de passagem
Que deixaste longe
Num porto de escala?
Ou tua amargura
Tem outras raízes
Largas fraternais
Mais nobres mais fundas?
Marinheiro triste
De um país distante
Passaste por mim
Tão alheio a tudo
Que nem pressentiste
Marinheiro triste
A onda viril
De fraterno afeto
Em que te envolvi.

Ias triste e lúcido
Antes melhor fora
Que voltasses bêbedo
Marinheiro triste!

E eu que para casa
Vou como tu vais
Para teu navio,
Feroz casco sujo
Amarrado ao cais,
Também como tu
Marinheiro triste
Vou lúcido e triste.

Amanhã terás
Depois de partires
O vento do largo
O horizonte imenso
O sal do mar alto!
Mas eu, marinheiro?

- Antes melhor fora
Que voltasse bêbedo!"

terça-feira, dezembro 09, 2003

Lisbon after the rain



Sempre que chove em Lisboa, mas chuva a sério, forte e durante algumas horas, lembro duas músicas: uma que se chama "Europe After the Rain" (só pelo título mesmo, porque nem lembro como é a música nem qual o grupo... Japan? John Foxx a solo? não lembro... é isso, amnésia...) e outra de Peter Gabriel, "The Flood". Mais uma vez, também não lembro se era do primeiro ou do segundo trabalho dele a solo. Mas pouco importa. É piano e voz. Uma espécie de solidão de náufrago.

Recorrente, é também a minha idéia de Lisboa como uma outra Veneza. Em vez das ruas alagadas, teríamos canais. Numa espécie de convívio permanente com a água, a quadrícula de reconstrução da parte baixa da cidade no século dezoito teria criado canais e não ruas. Existiria um grande porto exterior, um porto para quem entrasse do mar ou viesse descendo o rio; o Terreiro do Paço seria a mesma grande praça, mas rodeada de água, permitindo a entrada nos canais que cortariam a Baixa da cidade; o Rossio seria um pequeno porto interior e, penetrando ainda mais na geografia urbana, braços de ria se alongariam mais para norte. A Baixa seria assim uma sucessão de canais e de pequenas pontes, trazendo uma placidez e silêncio aquáticos a uma cidade feita de luz e reflexos cintilantes, mesmo sob um céu de chumbo.

Mas tudo isto é sonho. Lisboa tem algo que não afeta Veneza: as marés. Enquanto que a capital da lagoa tem variações de maré de alguns centímetros, as marés de Lisboa variam alguns metros... e isso poderia transformar os canais em pequenos regatos ou simples charcos, deixando o lodo à vista e trazendo um cheiro de morte e decomposição à cidade...

Mas Lisboa esqueceu a água, esqueceu o rio, esqueceu a chuva. Esqueceu a sua memória das águas. Transformou suas linhas de água, seus ribeiros e regatos, seus arroios, em caminhos, em estradas, em ruas, impermeabilizadas ao longo do tempo por pedra, por macadame, por alcatrão. Escondeu as suas águas dentro de largos tubos, de largos canos, como se assim, escondendo, esquecesse... Mas a água não esquece seus caminhos. E então, como que gritando sua presença, alaga e inunda seus antigos espaços, reclamando de novo para si o que já foi seu.

Quem ao longo dos séculos tem descaraterizado Lisboa, numa espécie de soberba e sobranceria, não sabe mais como viver a dois: cada um tem seu espaço que deve ser respeitado e mantido, ou então a relação se quebra. E será sempre o elemento mais fraco a sofrer mais..

terça-feira, dezembro 02, 2003

as palavras surgem porque a tela está em branco. só. e porque o sol brilha lá fora. as árvores ainda têm algumas folhas mas pouco falta para que a sua nudez seja completa. e essa nudez que também é morte, afinal é vida. é morte que é apenas sono. e com despertar previsto para quando o frio for embora. estou agorinha ouvindo Jeff Buckley. Hallelujah. a transfiguração de uma música original de Leonard Cohen. é a voz de um morto. é a voz da morte. mas afinal voz da vida porque a estou escutando neste momento. e eu não estou morto (aparentemente, pois é isso que meus sentidos indiciam). e vejo esta luz de Lisboa. luz construída diretamente pelo sol e indiretamente por seus raios refletidos no Tejo. luz feita de céu e rio. o azul do céu parece pálido, enregelado, como querendo guardar o calor que o sol vai emprestando a Dezembro. e os barcos sulcando o rio parecem ainda espalhar mais esse calor que se encerra na luz e se multiplica em mil reflexos. como se à superfície do rio boiassem cristais facetados e estes fossem leves como o ar, subindo lentamente e pairando. pairando e esperando que alguém pegue neles e os guarde na palma da mão, fechada em concha. mão que apenas se vai abrir quando o olhar de um amante encontrar outro olhar que com o seu se cruze. então, num momento que não é momento pois vive fora do tempo, olhos nos olhos, abrindo essa mão, deixando pairar o segredo que aí se encerrava, todas as palavras não ditas serão entendidas.

segunda-feira, dezembro 01, 2003

Perambulagem



Vadiando com Paul Auster por Nova Iorque. Vadiando comigo por Lisboa.
Não conheço Nova Iorque . Com Auster tenho a sensação de conhecer. A sensação, apenas, que se desvanece quando fecho o livro. Mas enquanto leio lá vou seguindo pela Broadway até Rua 72, virando depois para a parte ocidental de Central Park e indo pela Rua 59 até à estátua de Colombo para ir novamente para o lado oriental e caminhando ao longo da zona sul de Central Park até Madison Avenue, cortando à direita e descendo até à Grand Central. Tudo fica bem real, "but I just can´t picture the thing..."

Vadiando comigo por Lisboa. Perambulando comigo por Lisboa. Perambular. Palavra bonita, não é? Perambular... menos agreste que vadiar. Perambular nos dá logo a idéia de perda, de perda do sentido que o nosso rumo vai tomando. E esta palavra não entrou no meu léxico há muito tempo. E agora, antes do texto, perdi muito tempo até me lembrar de novo como era mesmo a palavra. Me lembrei antes de escrever e depois esqueci. Amnésia... Tive que me socorrer do Houaiss e, na letra “p”, pacientemente, fui vendo qual a palavra que se encaixava naquele buraco da memória que de repente me havia feito perder a palavra. E fui vendo a quantidade de palavras bonitas que nós temos e não usamos mais. E depois, quando não lembramos a palavra certa, pegamos numa qualquer palavra estrangeira e passamos a usar. Porque se tornou moda. Por esnobismo. Por preguiça. Por desleixo? Os franceses agora estão eliminando a “contaminação” de estrangeirismos. Uma das últimas que eu vi foi a transformação de email em courriel (courrier electronique). Em português como ficaria?

Mas estou perdendo meu rumo... Hoje perambulei um pouco. Pelo Chiado. A minha colina preferida de Lisboa. Deixando o Tejo atrás, subi pela Rua do Alecrim. Já conheci esta rua com mais vida. Agora, alguns dos prédios estão entaipados, "graffittados", talvez destelhados para melhor apodrecerem com a chuva e cairem dentro de um ou dois invernos. É uma das formas de Lisboa mudar: deixar ruir os prédios mais antigos... Ao mesmo tempo, num espaço que eu sempre conheci livre (teve em tempos recuados alguns edifícios mas, ou tiveram o normal destino dos prédios que aqui se diluem quando chove, ou foram mesmo demolidos), surgem novas construções.

Continuo a subida. Chego ao Largo do Barão de Quintela. Um pequeno largo bem simpático. Aqui, uma estátua de Eça de Queiroz. No “seu” Chiado. Afinal, paralela à Rua do Alecrim, está a Rua das Flores, palco de um de seus romances (A Tragédia da Rua das Flores) já publicado postumamente. Bem postumamente, aliás... Do lado direito, um palacete, que pertenceu em tempos ao... Barão de Quintela. Atualmente, pertence ao IADE, Instituto de Arte e Design. Tem um interior bem interessante, tendo algumas salas completamente cobertas de frescos. Mas voltando ao Eça, ou melhor, à sua estátua, uma curiosidade. Há pouco tempo, a prefeitura teve que substituir a anterior, de mármore, por esta que, creio, é de bronze. Razão? Viviam quebrando os dedos da Verdade... Explicando melhor. A estátua é composta por duas figuras: uma figura feminina, quase desnuda (a Verdade) e outra masculina (Eça). A legenda da estátua é “Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diáfano da Fantasia”.

Continuo a subir e chego ao Largo de Camões. Bem, o Largo é à esquerda e eu estou agora entre duas igrejas. No topo poente do Largo de Camões, uma enorme tela cobre um edifício em recuperação. Nessa tela, a reprodução de um dos quadros mais conhecidos de Almada Negreiros: o retrato de Fernando Pessoa, sentado a uma mesa, com seu cigarro, uma chávena de café e os números da revista Orfeu. Viro à direita, e vou descendo. Se virasse novamente à direita, poderia ir ter ao Teatro de São Carlos, o teatro lírico de Lisboa. E foi nesse Largo de São Carlos que nasceu Fernando António Nogueira Pessoa, a 13 de Junho (dia de Santo Antônio, daí o António em seu nome) de 1888.
Mas não virei à direita, fui descendo. Passei a Casa Havaneza, fundamental para quem quiser comprar bom tabaco e charutos, por exemplo. À minha direita, uma estátua do poeta que dá nome a este largo: o poeta Chiado. E na esplanada da Brasileira, antigo lugar de tertúlias, mais uma estátua. Esta, de Fernando Pessoa. Aqui, muitos turistas aproveitam para tirar suas fotos. Porquê? Em tamanho natural, temos o Poeta, sentado a uma mesa da esplanada, tendo a seu lado uma cadeira vazia. Nessa cadeira vazia, muitos aproveitam para se sentar e se eternizar...

Entro na Brasileira e bebo um café. Saio. Continuo descendo a Rua Garrett. Os antigos armazéns que por aqui existiam, morreram. Já não vendem tecidos a metro nem trazem as últimas novidades da moda de Paris. Agora, pertencem a grandes marcas internacionais, como a Benneton.
Passo mais uma igreja e, numa esquina, uma livraria que vai resistindo aos séculos: a Livraria Bertrand. Entro. Sala após sala, vou vendo as novidades. Passo uma sala, e outra e outra. E mais outra e mais outra. Vou vendo os livros e vou folheando. Hoje, nenhum me quer. Saio sem comprar nada.

Antes de continuar a descer, páro um pouco. Para além do edifício dos Grandes Armazéns do Chiado, agora transformado em shopping e em hotel, ainda se vê um pouco das muralhas do Castelo de S. Jorge.
Continuo a descer. Agora, este pedaço da rua é só para pedestres. E, surpresa, alguém toca piano. Na rua! Não será bem na rua, mas sim numa viatura trasnformada. A caixa de ressonância do piano é o próprio veículo, que está cheio de almofadas e de almofadões. Eis a prova de que se pode ouvir um piano em plena rua...

Agora, minha perambulação já tem um objetivo: a FNAC. Deixou de ser perambulação. E por aqui pára meu texto...

domingo, novembro 16, 2003

Curiosidades



Hoje, duas curiosidades. Dois poemas. Um de Fernando Pessoa. Outro, de Álvaro de Campos (também ele Fernando Pessoa mas afinal diferente porque outro...). O primeiro poema foi dito por Daniela Mercury num show especial do "Altas Horas", programa de Serginho Groisman, feito com a Sinfónica de São Paulo. O poema seguinte, segue as palavras de Baudelaire ontem postadas pela Mônica no Ponto Gemini (para entenderem, cliquem no Ponto G aqui do lado...). Mas Álvaro de Campos não segue Baudelaire. Creio até que serve de contraponto ao poema. Opiniões?


"A criança que ri na rua, (4-10-1934)

A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor,
Ainda que o amor seja mudo."

Fernando Pessoa

"CARNAVAL

A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira...

A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões atrás da alegria
Duma plebe farsante e copiosa...

Cada momento é um carnaval imenso
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisto maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso

De mais... Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver onde é que tem o pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça...

Automóveis, veículos, (...)
As ruas cheias, (...)
Fitas de cinema correndo sempre
E nunca tendo um sentido preciso.

Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,
Cambaleio nas minhas sensações,
Sinto uma súbita falta de corrimões
No pleno dia da cidade (...)

Uma pândega esta existência toda...
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o crente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda...

E contudo eu estou como ninguém
De amoroso acordo com isto tudo...
Não encontro em mim, quando me estudo,
Diferença entre mim e isto que tem

Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo...

Que tipos! Que agradáveis e antipáticos!
Como eu sou deles com um nojo a eles!
O mesmo tom europeu em nossas peles
E o mesmo ar conjuga-nos

Tenho às vezes o tédio de ser eu
Com esta forma de hoje e estas maneiras...
Gasto inúteis horas inteiras
A descobrir quem sou; e nunca deu

Resultado a pesquisa... Se há um plano
Que eu forme, na vida que talho para mim
Antes que eu chegue desse plano ao fim
Já estou como antes fora dele. É engano

A gente ter confiança em quem tem ser...
(...)

Olho p'ró tipo como eu que ai vem...
(...)
Como se veste (...) bem
Porque é uma necessidade que ele tem
Sem que ele tenha essa necessidade.

Ah, tudo isto é para dizer apenas
Que não estou bem na vida, e quero ir
Para um lugar mais sossegado, ouvir
Correr os rios e não ter mais penas.

Sim, estou farto do corpo e da alma
Que esse corpo contém, ou é, ou faz-se...
Cada momento é um corpo no que nasce...
Mas o que importa é que não tenho calma.

Não tenciono escrever outro poema
Tenciono só dizer que me aborreço.
A hora a hora minha vida meço
E acho-a um lamentável estratagema

De Deus para com o bocado de matéria
Que resolveu tomar para meu corpo...
Todo o conteúdo de mim é porco
E de uma chatíssima miséria.

Só é decente ser outra pessoa
Mas isso é porque a gente a vê por fora...
Qualquer coisa em mim parece agora"

Álvaro de Campos

Músicas, músicas, músicas


As músicas também têm estações. Claro, existem as estações de rádio onde as podemos escutar, mas não estou me referindo a essas. Estou me referindo ao Inverno, à Primavera, ao Verão, ao Outono...

Assim, existem músicas de Outono/Inverno e músicas de Primavera/Verão. Podemos escutar músicas de Inverno em pleno Verão e vice-versa. As músicas não estão diretamente ligadas à estação do ano, mas sim à estação do nosso coração, à estacão do nosso interior, ao nosso "inner self"...
Mas que quero eu dizer com isto? Um exemplo prático e próximo da realidade (apesar das exceções): samba é música de Verão e Bossa Nova é música de Outono. As músicas de Inverno as ouvimos em momentos de maior intimidade, de maior solidão. E pode ocorrer uma de duas coisas: vamos em busca da música porque sentimos a necessidade de a conjugar com nosso estado de espírito ou é a própria música a induzir esse estado.
Mas porquê toda esta conversa agora? Ontem peguei numa fita ao acaso, que já havia gravado faz tempo. Como eu nunca coloco o alinhamento das músicas na cartolina, não sabia muito bem o que iria ouvir. A única indicação que tinha era o título que tinha na lombada (costumo dar título às minhas fitas, quando são gravadas com algum propósito): "Canções Atlânticas".
[como trilha sonora, enquanto escrevo, escuto Pink Floyd e o seu trabalho de 1975 (xi, como o tempo corre...) "Wish You Were Here"]
Música após música, senti o Inverno descer até mim. O frio chegando e a vontade de encontrar calor, aquele calor bom do Inverno, que se encontra junto a alguém, partilhando um cobertor, um bom chocolate quente, a visão de uma lareira com lenha crepitando. Das que ouvi, destaco desde logo uma música, dos Lamb: "Gorecki". Já "Merry Christmas, Mr Lawrence", de Riuichi Sakamoto é música outonal.
Mas as classificações “estacionais” de cada canção ou melodia dependem da sensibilidade de cada um. Para uns o Inverno pode ser Primavera ou Verão, para outros o Verão pode ser Outono ou Inverno. Depende da própria música, do primeiro momento em que ela é escutada, de outro momento em que ela é novamente escutada, de com quem ela é escutada e partilhada, de quem a dá a partilhar, de...

Pego agora emprestadas mais algumas palavras de Rob, o personagem principal de “Alta Fidelidade”:
“Vêem [ele fala assim direto com o leitor], os discos me ajudaram a ficar apaixonado, sem dúvida. Oiço algo novo, com uma mudança de acorde de derrete minhas entranhas, e antes que eu perceba estou procurando alguém, e antes que eu perceba encontro. Me apaixonei por Rosie (...) após me apaixonar por uma canção dos Cowboy Junkies: escutei escutei escutei, e ela me fez sonhador, e eu precisava de alguém com quem sonhar, e a encontrei, e... (...)”

E antes de acabar, as palavras de Roberto Damatta que utilizou como mote o último trabalho de Rod Stewart “The Great American Songbook” (que inclui composições deCole Porter, George e Ira Gershwin, Jerome Kern eDorothy Fields, entre outros):
“Não cabe analisar os motivos do cantor. Mas cabe, sim, falar do poder mágico dessas canções que traduziram tanto do seu tempo (...), quanto a tentativa de todos os artistas de capturar a nossa perene frustração diante da finitude, das agruras do esquecimento e da indiferença, o desejo inoportuno, o fato de que todos somos passageiros e que, em certos momentos, encontramos a companhia perfeita, descobrimos a sintonia certa e vivemos plenamente a magia do encantamento, da paixão e do amor.
Em contraste com a chamada «música erudita», a «música popular» leva à imitação. Muitos compositores, sobretudo os que produziam nos Estados Unidos, uma sociedade onde o sexo era reprimido por um puritanismo sufocante, tinham plena consciência de que suas canções eram veículos para todo o tipo de diálogo. Do que fala das banalidades do quotidiano (...) como prova de amor e, diríamos nós, de saudade (como na música These Foolish Things); à tentativa de reter o momento mágico da presença da pessoa amada em todo o seu brilho e beleza erótica (quando diz: no dia em que eu estiver terrivelmente deprimido e, como o grande Manuel Bandeira, com vontade de me matar, eu vou pensar na sua aparência nesta noite, como na música The Way You Look Tonight).
(...) Certas melodias têm tanta vida que obrigam à sua manifestação, mesmo pelos maus cantores. Eles não cantam nada, mas são, sim, cantados por essas grandes músicas.”

Boas músicas...

quinta-feira, novembro 13, 2003

Meia-idadismo


O meu tema de hoje surgiu meio por acaso. Comentei com um amigo meu um texto que havia lido e que ele desconhecia. Pois bem, o texto é de Edson Athayde e a crônica que ele escreveu tem o título que coloquei: "Meia-idadismo".
Mas antes, quem é Edson Athayde? Brasileiro, ou melhor, nascido no Brasil, vivendo em Portugal há doze anos, publicitário, mantém uma crônica semanal num dos suplementos de sábado de um diário de referência aqui de Portugal. O jornal é o Diário de Notícias e o suplemento (ótimo suplemento!) é o DNa (é, se escreve assim mesmo). Como título geral de suas crônicas deu o nome de "Os trintões".
Esta semana, a questão era a meia-idade. Quando chegamos à meia-idade? Passo agora a palavra ao Edson:

"(...) Para facilitar o auto-reconhecimento do seu meia-idadismo, reuni uma série de indicações (...) que permite que você descubra se está naquele ponto da estrada em que ainda não vê o fim da linha mas que já não dá para voltar para trás. Portanto, você é uma pessoa de meia-idade quando:
- Em vez de ir escondido dos pais ao concerto dos Rolling Stones, passa primeiro na casa deles para deixar as crianças
- Homem: presta mais atenção a uma mulher quando ela fala, do que quando anda
- Mulher: consegue se divertir mais ao lado de um homem que debaixo dele
- Consegue passar horas na cama com a sua parceira só a conversar
- Relê os clássicos e descobre que eles não eram tão chatos assim
- A maioria dos telefonemas que recebe em casa são para os seus filhos
- Tem mais cabelos na toalha que na cabeça
- Troca a cerveja por um bom vinho
- Dá preferência aos vinhos tintos por causa dos flavonóides
- E o pior: sabe o que são os tais flavonóides
- Assistiu à chegada do homem à Lua
- Já fez sexo sem camisinha sem ter medo de apanhar AIDS
- Para as mulheres: a única maneira de alguém pedir para você fazer um topless é quando vai fazer uma mamografia
- Para os homens: a memória começa a ir embora e a única coisa que ainda consegue reter com facilidade é água"

A lista é ainda mais longa, mas creio que dá pra ter uma idéia sobre se você já chegou ou não à sua meia-idade... E acho que regressarei aos textos do Edson noutras ocasiões.

segunda-feira, novembro 10, 2003

Canções e palavras


A música chega até nós de vários modos, ou melhor, apreendemos a música de diversos modos: ou somos influenciados pelo ritmo, ou somos influenciados pela melodia, ou somos influenciados pela voz. Basicamente. Chega uma altura, porém, em que passamos a tomar atenção às palavras que vestem as canções. Ou melhor ainda: as palavras que vestiam as músicas passam a ser palavras vestidas pela música. Aí, tudo se modifica. Ouvimos as palavras, interiorizamos as palavras e a música passa a ser o pretexto para repetirmos essas palavras uma e outra e outra vez, vezes sem conta.
Algo se passa a partir do momento em que as palavras passam a fazer sentido. Deixa de ser uma questão de cuca e de corpo. Passa também a ser uma questão de coração. Surge então a dúvida: eu gosto da canção pela música ou gosto da canção pelo poema?
Existe um livro, de título original “High Fidelity” (Alta Fidelidade), de Nick Hornby, que deu em filme, com o mesmo nome, e cujo director não recordo quem é, mas que tem o John Cusack como protagonista, onde a música desempenha papel principal. A vida se cola com as músicas e as músicas se colam à vida. Como se todos tivéssemos a nossa trilha sonora que nos vai acompanhando em todas as acções. Aí, o protagonista, logo no início, estabelece um Top 5 de garotas que, num ou noutro momento, romperam com ele. A número quatro lhe dá motivos para reflexão: “O que veio primeiro, a música ou o me sentir destroçado [após romper com a número quatro]? Ouvia música porque estava destroçado? Ou estava destroçado porque ouvia música? (…) As pessoas se preocupam com garotos brincando com armas e adolescentes vendo vídeos violentos; nos assustamos que eles sejam tomados por uma cultura de violência. Ninguém se preocupa sobre garotos escutando milhares - literalmente milhares - de canções sobre corações partidos e rejeição e dor e depressão e perda. As pessoas mais infelizes que conheço, do ponto de vista romântico, são as que mais apreciam a música pop; e eu não sei se foi esta música pop que causou esta infelicidade, mas eu sei que eles têm escutado mais músicas tristes do que têm vivido as suas vidas infelizes”.
Algumas páginas mais à frente, nova indicação sobre o seu relacionamento com as músicas. Diz ele: “Para mim, fazer uma fita é como escrever uma carta - há muito apagar e repensar e começar de novo (...) Uma fita com uma boa compilação, assim como romper com alguém, é algo difícil”.
Aqui, volto eu ao início. A partir de que momento começamos a usar as canções como palavras que não dizemos mas que gostaríamos de dizer? Ou melhor, a partir de que momento as canções deixam de ser simples música e passam a expressar o que sentimos? Quando temos alguém a quem desejamos expressar esses nossos sentimentos? Quando temos alguém com quem possamos partilhar esses sentimentos? Quando desejamos ter alguém com quem possamos partilhar esses sentimentos? Quando pensamos que há alguém que pode entender as palavras das canções com nós as entendemos?
Opiniões?

sexta-feira, novembro 07, 2003

Joaquim Pessoa x 2



Revelando mais dois poemas de Joaquim Pessoa:

" Cavalo de Palavras

Cavalo de palavras quem me agarra
quem aparta de mim esta saudade?
Quem fez da minha voz uma guitarra
tocada pelos dedos da verdade?

Cavalo de palavras quem me dera
poder erguer a voz. Calar o pranto.
Trazer no meu poema a primavera
por dentro duma flor de verde espanto.

Cavalo de palavras meu amigo
meu soneto da mágoa mais acesa
pelas praias do sangue vou contigo

percorrer esta língua portuguesa
procurando o lugar que é o abrigo
das enormes gaivotas da tristeza."

"Não Vou Pôr-te Flores de Laranjeira no Cabelo

Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo
nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.

Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.

Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre."

quarta-feira, novembro 05, 2003

Vinicius e Botto



Hoje, dois poemas pequeninos, o primeiro de Vinicius e o segundo de António Botto. De Botto, poeta de escândalos e polêmicas, contemporâneo de Pessoa, falarei noutra altura.
Em minha tristeza, falam os poetas:

- Fala Vinicius

"A ESTRELA POLAR

Eu vi a estrela polar
Chorando em cima do mar
Eu vi a estrela polar
Nas costas de Portugal!

Desde então não seja Vênus
A mais pura das estrelas
A estrela polar não brilha
Se humilha no firmamento
Parece uma criancinha
Enjeitada pelo frio
Estrelinha franciscana
Teresinha, mariana
Perdidada no Pólo Norte
De toda a tristeza humana."


...e agora Botto

"Chora a amante esquecida,
Chora quem vai barra fora;
- Quem não chorou nesta vida
Se o próprio mar também chora?
Sim; tudo acaba num ai,
Num silêncio, num olhar,
Ou numa lágrima triste!
- Nem já sei se te beijei,
Nem me lembro se me viste...
É isto, apenas. O mais
É mentira e fantasia...
- Se a vida não fosse choro,
o que é que a vida seria?"

sábado, novembro 01, 2003

Plágio



O texto que se segue é um plágio. E isto porque desconheço o autor da estória. Recebi por e-mail como um reenvio, daqueles mails que vão saltando de caixa do correio em caixa do correio e que numa hora podem cobrir todo o planeta... Leiam primeiro a estória e falamos da moral da mesma no final:

"Havia um cego sentado na calçada, com um boné a seus pés e um pedaço de
madeira que, escrito com giz branco, dizia:
"Por favor, ajude-me, sou cego"
Um publicitário que passava em frente a ele parou e viu umas poucas moedas
no boné. Sem pedir licença, pegou o cartaz, virou-o, pegou o giz e escreveu
outro anúncio. Voltou a colocar o pedaço de madeira aos pés do cego e foi
embora.Pela tarde o publicitário voltou a passar em frente ao cego que pedia
esmola. Agora, o seu boné estava cheio de notas e moedas. O cego reconheceu
as pisadas e lhe perguntou se havia sido ele quem reescreveu seu cartaz,
sobretudo querendo saber o que havia colocado. O publicitário respondeu:
"Nada que não esteja de acordo com o seu anúncio, mas com outras palavras".
Sorriu e continuou seu caminho. O cego nunca soube, mas seu novo cartaz
dizia:
"Hoje é Primavera, e não posso vê-la".
Mudemos a estratégia quando não nos acontece alguma coisa."

Afinal, o que aconteceu a quem? Bem, este publicitário só em estória mesmo, porque aparentemente saiu sem tirar vantagem. Eventualmente, seu ego deve ter ficado bem maior porque sua frase deu sucesso. O cego, bem, ele ganhou mas sem saber como. Se chover e o giz se apagar, continuará escrevendo simplesmente que é cego. E já vimos que isso é pouco lucrativo. Pensando naquela estória chinesa, lhe deram o peixe mas se esqueceram de o ensinar a pescar.

Será que afinal que a moral está realmente na mudança da estratégia? Acho que sim, mas nem sempre nós a conseguimos enxergar. E os amigos servem, também, para fazer luz sobre o que deve ser mudado. Mas é minha conclusão é diferente: o importante, é dar poesia aos outros. E não estou falando no sentido de ofertar poemas. Estou me referindo a ver e a fazer ver com os olhos do coração.

Ou será que não é nada disto que estou escrevendo e entendi tudo errado?

segunda-feira, outubro 27, 2003

Pessoa, mas Joaquim



Pessoa não é só Fernando. Hoje, apresento um poema de Joaquim Pessoa. Um poema que me acompanha há muitos anos...

"EU SEI, NÃO TE CONHEÇO, MAS EXISTES

Eu sei, não te conheço, mas existes.
Por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas nada, deixa-me inventar-te.
Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
Tenho feito amor de muitas maneiras
docemente,
lentamente,
deseperadamente,
sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim, que é em mim que devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti
que eu amo."

terça-feira, outubro 21, 2003

3 polaroides



1. Sol poente pintando a ouro os trilhos do bonde .
2. Avião sublinhando nuvens no céu.
3. Sol lançando prata sobre o rio.

domingo, outubro 19, 2003

90 anos


Se fosse vivo, ou melhor, se estivesse entre nós, corrigindo ainda, se corpo e espírito ainda estivessem unidos, faria hoje 90 anos Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes. Quem? Vinícius de Moraes...
Ele está vivo, enquanto for lido e ouvido. Está entre nós, enquanto permanecer em nós sua memória.
Dele, de sua poesia, disse outro poeta vivo, Carlos Drummond de Andrade: "Eu acredito que a poesia dele sobreviverá, independente de modas e teorias. Porque responde a apelos e necessidades de todo o ser humano. Vinicius passou a vida preocupado, à sua maneira, usando meios próprios de expressão, com o problema do destino e da finalidade do homem."
Combatendo a minha amnésia de datas, e celebrando este dia, aqui segue seu "Soneto de Aniversário", a partilhar por todos os amantes, isto é, aqueles que amam e são amados:

"Soneto de Aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece."

E agora, enquanto escuto Toquinho e Chico Buarque cantando seu "Samba prá Vinícius", ergo meu copo com whisky e, tocando no copo do poeta, sorrio e digo: Obrigado...

segunda-feira, outubro 13, 2003

Velas


Desde que partilhei o texto de Rubem Alves aqui no blog, duas coisas sucederam. Não, três: tive o prazer de ter mais pessoas visitando meu blog, fiquei pensando na chama das velas e tentei comprar o livro de Bachelard.
Quanto ao livro de Bachelard, apenas o encontrei em francês. "La flamme d'une chandelle". Como o vocabulário utilizado me pareceu suficientemente acessível, comprei-o. Em português, talvez esteja editado pela Martins Fontes. Como eu não sou barra em francês, a leitura segue de forma lenta, estando ainda no primeiro capítulo. Mas logo o "avant-propos" (o prólogo) merece leitura atenta. Aventuro-me agora como tradutor:
"A chama, entre os objectos do mundo que apelam ao devaneio [ou ao sonho, não sei bem como traduzir], é um dos maiores operadores de imagens. A chama nos força a imaginar. Deante de uma chama, logo que se sonha, o que se percebe não é nada comparado com o que se imagina".
Espero não ter traído muito o que o autor realmente escreve...

E daqui decorre (da chama da vela) um dos mecanismos recentemente por mim criados na luta contra a ansiedade: pensar na chama duma vela. Apenas na chama. Uma chama pequena, mais ou menos amarelada, dando um pouco de luz e algum calor. Penso nessa chama, ou em representações dessa chama, com a luz e com a sombra, e passo a me sentir mais sereno. Acho que é mesmo isso. Serenidade.

Isso também resulta com fumo. Tanto de um pau de incenso como de um cigarro. Na ausência de vento, gosto de ver o fumo subir, bem direito. E algures na sua subida, começar a se enrolar. E depois voltar a ficar direito. E, dentro de uma sala, ver o fumo se espalhando a meia altura, como se fosse um líquido, um pequeno mar, que ondula ao menor movimento do meu corpo. E da chama da vela, cheguei à idéia de mar. Com pouco esforço, chego aos veleiros. Mas aí, a serenidade é apenas aparente...
Regressando à chama da vela, alcanço a serenidade pensando nessa pequena ilha de luz que destrói a escuridão. Não por completo, é certo, mas o suficiente para garantir que o negrume pode desaparecer...

Conforme for lendo o livrinho de Bachelard, tentarei ir dando conta das descobertas que irei fazendo.

Quanto ao acréscimo de visitas, têm uma responsável diretamente identificável: Deize, editora do Rosa Choque. Chegam lá entrando aqui na coluna da esquerda onde vêem "brinque com as cores...".
Obrigado por seu marketing. Espero não ter defraudado as expetativas por si criadas em seus leitores...

domingo, outubro 05, 2003

Partilhando a Primavera



Partilhei meu Inverno. Logo me enviaram quentes brisas de Primavera para afastar o frio.
A essas brisas acho que posso chamar afeto... E no meio de toda esta aparente impessoalidade digital, eletrônica, o que quiserem chamar, descobri uma rede de afetos. E isso eu agradeço!
Uma das brisas de Primavera chegou por uma amiga (obrigado Dilma! E não quero esquecer a Lilia nem a Deize...). Mas é sobre esta brisa especial que quero falar. Foi um texto de Rubem Alves sobre a Solidão. Não transcrevo aqui todo o texto, mas da sua leitura passei a ter uma visão diferente daquilo a que chamava solidão.

O texto tem por título "A solidão amiga" e começa deste modo:
"A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...

Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, "parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis". A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: "Como se comporta a Sua Solidão?" Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida".

Aqui, eu interrompo um pouquinho. Gosto de velas. Gosto da chama das velas. Da mansidão (como ele refere no texto) da sua luz, por vezes incerta, e que faz as sombras dançarem. Adolescente, por vezes apagava o candeeiro elétrico da secretário e acendia uma vela. E escrevia. Encerrado dentro daquele casulo de luz, ia enchendo meu caderno com as bobagens que iam cruzando em minha cabeça. Ainda hoje, mesmo sem escrever, gosto de sentir o aconchego da vela. Reduz o espaço de um quarto ou de uma sala a uma dimensão mais humana, à nossa dimensão.

E a questão dos afetos, que eu sinto, estará ligada com a comunhão que Rubem refere? Esta comunhão ligada à ausência, à distância?

Mas retomemos o texto: "(...) Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:

"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!"

(...) O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. (...) A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira. (...)"

Aqui termino a minha transcrição. Conclusão: quando o Inverno chega, há que vivê-lo. Inteiro. Porque sem um bom Inverno, a Primavera não será bem sentida...

sábado, setembro 27, 2003

Só.
Hoje, estou me sentindo só. Não por estar sózinho, não. É solidão mesmo. Daquela que dá frio, daquela que dói, daquela que tira a côr das coisas e põe tudo a preto e branco. Não. Põe tudo a preto.
Encontro algum refúgio e companhia nesta tela, neste teclado. E o texto vai surgindo. A preto. Sem outra mão para tocar, meus dedos tocam as teclas. Sem outros olhos para olhar, meus olhos olham pra tela.
Li alguns textos de Clarice Lispector esta tarde, no metrô, quando regressava a casa. Não me senti melhor. Me afundei mais um pouco. Escrita torturada, a dela. Solitária. Pedindo ajuda.
Ecos de casa vazia. Sinto ecos de casa vazia. Ou serei eu que estou vazio? Ou serei eu que tenho os ecos de tão vazio que estou?
Estou num corredor. Longo corredor de paredes nuas. Paredes nuas e portas fechadas. Que está para além das portas? Salas vazias, certamente. Escuras e frias. Como eu. Frias. Frio. Tenho frio. Estou frio. Talvez meu coração tenha parado. Besteira. Se tivesse parado não estaria escrevendo.
E escrevo para esquecer que estou só. Para aquecer o eu que está só.
Me deu um arrepio agora. Será o frio da sala? Ou será o inverno em mim? Parece que a neve está chegando não tarda...

terça-feira, setembro 23, 2003

De Moraes na rede...



...muito mais tempo, agora que as palavras do poeta circulam livres na net.
Confiram aqui ao lado a nova porta para o cantor da mulher, da amante, da vida...

sexta-feira, setembro 19, 2003

Rio


Alvíssaras!!! Saí do armário!
Depois de tanto tempo tendo por companhia a parede branca que me servia de janela, passei para o “campo de refugiados”, com mais seis pessoas.
Mas, o fundamental, é a janela... devolveram-me o rio!
Já tenho menos um motivo pra minha depressão...

Vinicius e Ney



Pegando nos comentários a meu blog do Cesariny, veio a memória dos "Secos & Molhados" e de Ney Matogrosso. E a minha primeira memória do grupo já tem quase 30 anos!... TV ainda a preto e branco e uma voz estranha. Mulher? Homem? Guri ainda, me causava confusão. Um homem cantando com aquela voz? Mas se era mulher, teria cortado os peitos? Eu ouvia, olhava, gostava, mas não entendia. E qual é a música na minha memória desse tempo?

A poesia é para ser dita ou para ser cantada. Creio que não há dúvida nisso. Lida fica meio sem graça porque um poema só está completo quando é escutado. Vinicius nos deu tudo: para além de escrever (claro!), disse seus poemas, cantou seus poemas, deu seus poemas a cantar. A poesia, com ele, era completa.

Pegando na música da memória, surge, pois,

"A ROSA DE HIROSHIMA

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Vinicius de Moraes"

Aproveitando ainda Vinicius, apenas mais um poema seu...

"A AUSENTE

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar..."

quinta-feira, setembro 18, 2003

Esclarecendo



A crónica do Arnaldo Jabor que eu menciono abaixo está aqui.

O poema original de Fernando Pessoa, ligeiramente modificado pelo Cesariny, é este:

"Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

Fernando Pessoa, 5/6-2-1931"

Esclarecidos?

quarta-feira, setembro 17, 2003

Para quem deixou escapar, recomendo a leitura do Jabor desta semana...

Cesariny



Ao ver a referência a Manuel Maria Barbosa du Bocage, lembrei-me de colocar aqui um dos poemas que ainda hoje o faz vivo no imaginário popular. Depois, pareceu-me demasiado óbvio. Decidi então não colocar.
Como gosto de Fernando Pessoa, eventualmente poderia cair bem aqui um dos seus poemas. Mas não me recordo de nenhum poema nesta onda bocagiana.
Cheguei então a Cesariny, Mário Cesariny de Vasconcelos. Este, pertence a uma classe especial de poetas: os vivos! Já não é jovem e fez parte do movimento surrealista português (apesar da ditadura, por aqui também tivémos surrealismo). Entende-se facilmente o fio condutor que me trouxe de Bocage até Cesariny através de Pessoa pelo nome do livro onde fui tirar o poema: "O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às Criancinhas Naturais e Estrangeiras por M. C. V.". Aqui, Cesariny, pegando em poemas e textos de Pessoa (e heterónimos), os transforma, os transfigura, os recria em novas formas.
E aqui segue o exemplo:

"É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que um tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d'ir urinar.

Isso eu o quiz dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
«O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é»
Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até).
...................................................................................................................
Também aquela do «outrora-agora» e do «ah poder ser tu
[sendo eu» foi um bom trabalho
Para continuar tudo co'a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.

M.C.V."

Para não ficarem com uma idéia errada do conteúdo do livro, aqui fica mais um poema do Cesariny:

"Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supôr o que dirá
Tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor - muito melhor! -
Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

M.C.V."

terça-feira, setembro 16, 2003

O principezinho



"XVIII

O principezinho atravessou o deserto e a única coisa que encontrou foi uma flor. Uma flor de três pétalas, uma florzita de nada...
- Olá, bom dia! - disse o principezinho.
- Olá, bom dia! - disse a flor.
- Onde é que os homens estão? - perguntou delicadamente o principezinho.
Uma vez, a flor tinha visto passar uma caravana.
- Os homens? Tenho a impressão que só há uns seis ou sete. Vi-os há uns anos. Mas nunca se pode saber onde é que estão. O vento empurra-os de um lado para o outro. Não têm raízes e isso faz-lhes muita falta.
- Adeus - disse o principezinho.
- Adeus - disse a flor."

Desde já, as minhas desculpas às quatro leitoras deste meu blog. Se ontem o Petit Prince surgiu no original foi apenas por dois motivos: a edição francesa foi a primeira que me veio à mão e, depois, o meu francês é demasiado fraco para me poder dar ao luxo de fazer tradução para os outros. Hoje, tendo redimir-me, utilizando o mesmo trecho a partir de uma edição portuguesa. Mas creio que algo se perdeu entre o original e a tradução...
Porquê a escolha deste capítulo? Abri o livro ao acaso e foi este o trecho que me surgiu. Gostei da sua ambiguidade e postei-o. Foi só isso (mas eu continuo achando que as coincidências não são fruto do acaso...).
Falando deste livro de Saint-Exupéry, acho que é uma estória que vai crescendo connosco. Não é livro que se leia apenas uma vez (há quanto tempo não o lêem?). A cada nova leitura, vamos descobrindo aquilo que nos tinha passado desapercebido em anteriores leituras. Sentimos as palavras e os episódios de forma diferente. Aqui, neste momento, confesso que é um livro que me faz chorar. Ou quando as lágrimas não chegam a escorrer pelo meu rosto, fica um nó na garganta que me obriga a fechar o livro e a respirar fundo uma, duas, três vezes... Pronto, agora está dito.
E já que estou numa de confissão, há também um filme (entre outros, mas não muitos) que me causa o mesmo efeito: "Cyrano de Bergerac", com o Gerard Depardieu. É numa cena quase no final do filme (quase no final da vida...), quando Cyrano visita Roxane e esta percebe que afinal, quem lhe escrevia as cartas, não era Christian mas sim seu primo, Cyrano, que a havia vistado diariamente nos ultimos tempos e nada havia dito...
E por aqui me fico porque já estou falando de mais...

segunda-feira, setembro 15, 2003

Le Petit Prince


"XVIII

Le petit prince traversa le désert et ne rencontra qu'une fleur. Une fleur à trois pétales, une fleur de rien du tout...
- Bonjour, dit le petit prince.
- Bonjour, dit la fleur.
Où sont les hommes? demanda poliment le petit prince.
La fleur, un jour, avait vu passer une caravane:
- Les hommes? Il en existe, je crois, six ou sept. Je les ai aperçus il y a des années. Mais on ne sait jamais où les trouver. Le vent les promène. Ils manquent des racines, ça les gêne beaucoup.
- Adieu, fit le petit prince.
- Adieu, dit la fleur."

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

domingo, setembro 14, 2003

Noite


Hoje anoiteceu mais cedo em Lisboa.
Aos poucos, no seu caminho para poente, o sol foi mudando de cor. Empalideceu primeiro. Depois, foi ficando alaranjado. Até que se tornou vermelho. Como se de seguida se fosse tornar cor de sangue, prenúncio óbvio de calamidades ou pragas inomináveis. Mas não. Foi desaparecendo até ficar completamente obnubilado. Noite. Os candeeiros da rua se acenderam. Mas algumas porções de céu ainda estavam azuis!

Hoje, o fumo dos incêndios de Mafra, a cerca de cincoenta quilómetros de distância, chegou à cidade. Primeiro, o cheiro a queimado. Um cheiro gostoso, de lareira de inverno, mas que num dia quente como o de hoje destoava por completo. Depois, o fumo. De início, como se fosse um fino véu, que mal se percebe mas que vai suavizando as sombras na calçada. Adensa-se depois e é como se fosse nevoeiro. Mas um nevoeiro rasteiro, que nos permite ainda ver o céu azul sobre nossas cabeças. É quando o sol vai baixando no horizonte que se dão as mudanças na sua cor. Vamos sentindo um ardor nos olhos e a cinza vai pairando em nosso redor.
Depois que os candeeiros se acenderam, a cidade ficou com um aspecto irreal. Os cones de luz pareciam estar suspensos, nunca chegando a alcançar o chão. A luz perdia-se no fumo...

Eu pensava que os incêndios já haviam terminado. Engano meu. Como se os dezoito mortos, as dezenas de casas e os cerca de 400 mil hectares floresta e mato (essencialmente, mas também terrenos cultivados) não tivessem sido suficientes, Setembro vai tentar alargar estes números. Espero que a solução para este problema não passe pela transformação do país no prolongamento do Sahara...

sábado, setembro 13, 2003

Vinicius de Moraes



Eu sei que estou parecendo pouco original. Ultimamente, só tenho falado pela boca dos outros. Mas isto é como se fosse a resposta a estímulos. Desta vez, o mote foi Vinicius. E a sua forma de cantar (e contar) a mulher.

Me acompanhem na sua viagem, na sua

"VIAGEM À SOMBRA

Tua casa sozinha - lassidão infinita dos devaneios, dos segredos. Frocos verdes de perfume sobre a malva penumbra (e a tua carne em pianíssimo, grande gata branca de fala moribunda) e o fumo branco da cidade inatingível, e o fumo branco, e a tua boca áspera, onde há dentes de inocência ainda.

És, de qualquer modo, a Mulher. Há teu ventre que se cobre, invisível, de odor marítimo dos brigues selvagens que eu não tive; há teus olhos mansos de louca, ó louca! e há tua face obscura, dolorosa, talhada na pedra que quis falar. Nos teus seios de juventude, o ruído misterioso dos duendes ordenhando o leite pálido da tristeza do desejo.

E na espera da música, o vaivém infantil dos gestos solenes de magia. Sim, é dança! - o colo que aflora oferecido é a melodiosa recusa das mãos, a anca que irrompe à carícia é o ungido pudor dos olhos, há um sorriso de infinita graça, também, frio sobre os lábios que se consomem. Ah! onde o mar e as trágicas aves da tempestade, para ser transportado, a face pousada sobre o abismo?

Que se abram as portas, que se abram as janelas e se afastem as coisas aos ventos. Se alguém me pôs nas mãos este chicote de aço, eu te castigarei, fêmea! - Vem, pousa-te aqui? Adormece tuas íris de ágata, dança! - teu corpo barroco em bolero e rumba. - Mais! - dança! dança! - canta, rouxinol! (Oh, tuas coxas são pântanos de cal viva, misteriosas como a carne dos batráquios...)

Tu que só és o balbucio, o voto, a súplica - oh mulher, anjo, cadáver da minha angústia! - sê minha! minha! minha! no ermo deste momento, no momento desta sombra, na sombra desta agonia - minha - minha - minha - oh mulher, garça mansa, resto orvalhado de nuvem...

Pudesse passar o tempo e tu restares horizontalmente, fraco animal, as pernas atiradas à dor da monstruosa gestação! Eu te fecundaria com um simples pensamento de amor, ai de mim!

Mas ficarás com teu destino."

quinta-feira, setembro 11, 2003

Mar, poesia e Amizade


Este blog hoje era destinado a ser dedicado apenas ao mar. Mas o último texto da Cacau, ali no Ponto Gemini (podem lá chegar clicando no Ponto G, aqui ao lado...), e todos os comentários que esse texto gerou, levou-me a descobrir hoje, num livro de Ademar Ferreira dos Santos, poeta que publicou este ano, com 50 anos de idade, o seu primeiro livro de título "Descansando do Futuro [reserva de intimidade]", o prefácio de Rubem Alves. E transcrevo de seguida o início do prefácio, a parte que fala sobre a Amizade:
"Tardia mas felizmente a tempo eu e o Ademar nos descobrimos amigos. Aconteceu sem que nos tivéssemos encontrado. Tornamo-nos amigos através da poesia. Foi a palavra que nos ligou. Bernardo Soares disse que arte é comunicar aos outros nossa identidade íntima com eles. Foi assim: sem nunca nos termos visto descobrimos, através da palavra, nossa identidade íntima.
A amizade é uma experiência curiosa. Amigos não se fazem. Amigos são descobertos. E quando descobrimos um amigo temos a sensação de que já éramos amigos desde sempre. Entendemo-nos sem precisar explicar. Como se já soubéssemos... Nisso a amizade se parece com a experiência amorosa. Fernando Pessoa escreveu a mais bela declaração de amor jamais escrita. "Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a achar-te quando te encontrei..." A amizade é assim também. O encontro é um reencontro, a descoberta do que já havia. A amizade já existia, à espera..."

Lendo este pedacinho de texto, vejo porquê, tendo começado a medo, continuo blogando: a descoberta de amizades...
Mas pareceria mal transcrever parte do prefácio e não falar do poeta. Do poeta, pouco sei. Mas posso falar do livro, dividido em quatro partes: Epígrafes, Mumuki, Inconfidências e Confissões, Circunstâncias.
Agora, transcreverei apenas algumas das Epígrafes:

"De um lado o silêncio
do outro a palavra
No meio quê?"

"Se fugis permanentemente de vós
perguntai-vos
onde vos ireis encontrar?"

"Há ideias e modos de pensar
que prejudicam muito mais a saúde
do que o tabaco"

"Ninguém tem a chave para o interior de nós
perdida para sempre com o cordão umbilical
Agora estamos fechados por fora
à espera apenas de que nos espreitem"

"Começo onde acaba a tranquilidade
e termino onde o mar começa
Com o nome aspiro
a uma inquieta imensidão".

Agora sim, o Mar. Com Sophia...

"O Búzio de Cós

Este búzio não o encontrei eu própria numa praia
Mas na mediterrânica noite azul e preta
Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais
Rente aos mastros baloiçantes dos navios
E comigo trouxe o ressoar dos temporais

Porém nele não oiço
Nem o marulho de Cós nem o de Egina
Mas sim o cântico da longa vasta praia
Atlântica e sagrada
Onde para sempre minha alma foi criada

Junho 95"

"Foi no mar que aprendi

Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela
Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos de espuma

Por isso nos museus da Grécia antiga
Olhando estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais viva
E respiro melhor como na praia"

"Harpa

A juventude impetuosa do mar invade o quarto
A musa poisa no espaço vazio à contra-luz
As cordas transparentes da harpa

E no espaço vazio dedilha as cordas ressonantes"

"Beira-mar

Mitológica luz da beiramar
A maré alta sete vezes cresce
Sete vezes decresce o seu inchar
E a métrica de um verso a determina
Crianças brincam nas ondas pequeninas
E com elas em brandíssimo espraiar
Em volutas e crinas brinca o mar"

E neste momento, com o céu noturno enluarado, onde Marte está namorando Selene, por aqui me fico...

segunda-feira, setembro 08, 2003

Apelido


Coisa terrível é um apelido. Cola-se a uma pessoa como uma segunda pele e dificilmente sairá. Normalmente, só será esquecido se em determinado momento surgir outra apelido que remeta o primeiro para o limbo.
O apelido surge fruto do momento, devido à argúcia de quem o cria, se multiplica no meio em que o indivíduo se insere, e substitui qualquer outro tipo de identificação. Para todos os efeitos, o indivíduo perde o seu nome e passa a ser o seu apelido. Isto é especialmente verdade nos tempos de escola.
Mas o tempo va i correndo. A vida nos separa e os contatos entre todos são cada vez menos. Até um dia.
Até um dia em que vemos o nosso antigo colega. Será que ele se lembra de nós? Será que ele nos viu? Chamo? Não chamo? Huummm, ele agora deve estar bem de vida: terno completo de bom corte, a gravata parece de seda, os sapatos estão engraxados. Chamo? Não chamo? Mas qual é mesmo o nome dele? Paulo? João? Pedro? Não me parece. Só vem o apelido à ideia. Lembro que surgiu quando ele partiu o dedo da mão esquerda (o médio? o anelar?). Mas não. Não chamo. Não fica bem. Com um ar respeitável assim, não fica bem. É. Vou ficar calado. Deixo-o passar. Afinal, "Pé-de-cabra" era outro, "long time ago"...

domingo, setembro 07, 2003

Coisas boas da Catalunha


Ainda me faltam mais alguns detalhes sobre Barcelona. Neste caso, alargo a toda a Catalunha. Falarei sobre as coisas boas que, aconchegando o estômago, por vezes também confortam a alma. Não falarei de sopas (apesar do texto lindo de Rubem Alves que recebi. Obrigado Dilma). Falarei sobre três especialidades, muito pouco complicadas de recriar: cremat (bebida), pa amb tomàquet (entrada) e crema catalana (sobremesa).

Cremat
Esta é uma bebida típica catalã, muito fácil de fazer, e que tem semelhanças com a "queimada" galega. É especialmente indicada para noites frias...
Pegue-se então em meio litro de rum branco, metade dessa quantidade de brandy ou conhaque, meio litro de café quente, oito colheres de sopa de açucar, uma casca de laranja, uma casca de limão, pau de canela. Mistura-se o rum, o conhaque, o açucar, as cascas e a canela num alguidar de barro. Com cuidado deita-se fogo à mistura. Sem queimar as mãos, vai-se mexendo. Quando se tiver reduzido a metade (mais coisa menos coisa), junta-se o café quente. Quando o fogo se apagar, serve-se ainda quente, também em canecas de barro.

Pa amb tomàquet (Pão com tomate)
Com esse nome, parece bem simples, não é? E é.
Pegue-se num pão grande e corte-se em fatias. Tostem-se ligeiramente essas fatias. Esfregue-se meio dente de alho na fatia de pão. Dependendo do tamanho do tomate, corte-se ao meio ou em quartos e esfregue também na fatia de pão (na prática, o tomate que deve estar bem maduro e sumarento é desfeito na fatia do pão). Depois, espalhe um pouco de sal a gosto. Regue finalmente com azeite. Está feita a base. Agora, pode pôr por cima tudo o que você quiser: fiambre, salame, queijo, etc.

Crema Catalana
Na prática, parece ser leite creme.
A receita que a seguir indico é traduzida do catalão. Espero estar entendendo tudo para não dar erro. Então é assim: de meio litro de leite, retirar um pouco para desfazer 20 gramas de maizena. Levar o restante leite a ferver com a casca de um limão e um pau de canela Assim que começar a levantar fervura, retirar do fogo. Noutra tijela, bater quatro gemas com 125 gramas de açucar, até fazer uma massa cremosa. Juntar o leite (já sem a canela e a casca) e continuar a bater. Juntar depois a maizena, passada por um coador fino para evitar os grumos. Continuar a bater à mão e levar ao lume, mexendo sem parar e evitando que levante fervura. Depois de espessar, retirar do lume e continuar a mexer, para evitar talhar. Colocar num prato de servir ou em pratos individuais. Deixar arrefecer à temperatura ambiente. Antes de servir, polvilhar com açucar e queimá-lo com um ferro bem quente. E é assim.

Bom apetite, porque a cultura catalã também se come.

sexta-feira, setembro 05, 2003

FDP


Para além do Verissimo, também me habituei a ler o Arnaldo Jabor. E esta semana, ele é demolidor. E universal nos seus conceitos. Nada de dicotomia esquerda/direita. As classificações vão muito mais além. E chegam até aos fdp's. E daqui chego a um poeta português, vivo (nem todos os bons poetas são poetas mortos...), que dá pelo nome de Alberto Pimenta. Para além de poeta, é também um "performer". Entre outras coisas, certa vez passou um dia numa jaula do zoológico, com a indicação no exterior (se bem me lembro) "Homo Sapiens".
Talvez possa ser etiquetado na classe dos "poetas malditos".
No tempo em que apenas existia a TV pública, com dois canais e ainda a preto e branco, quando ela se podia dar ao luxo de ser elitista, sem preocupações com "shares" de audiência nem ibope, teve um programa com o título emprestado de um livro de Teixeira de Pascoaes: "A Arte de Ser Português". Lembro muito pouco dos seus programas, mas recordo-me de um em que ia perguntando às pessoas se sabiam qual o sexo do automóvel que conduziam. As reações da pessoas eram variadas. Depois explicava que os automóveis também têm sexo. E pouco mais recordo...
Mas sobre os FDP, publicou em 1977 uma pequena obra a que deu o nome de "Discurso sobre o filho-da-puta, com notas do "Cisne Branco" em tradução do "Cisne Negro" (antecedido do seu PLANO GERAL e da sua BALADA DITIRÂMBICA)". Teve várias edições e foi até publicado no estrangeiro. No Brasil foi publicado pela editora Codecri, do Rio de Janeiro, em 1983.
Aqui segue a transcrição da balada ditirâmbica, balada esta recorrente em muitas noites de poesia, por vezes quase clandestinas, a que em tempos eu assistia.

"Balada ditirâmbica
do pequeno e do
grande filho-da-puta


I

o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filha-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem
grandes
e
filhos-da-puta
que nascem
pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem
uma pequena
visão das coisas
e mostra em tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o pequeno filho-da-puta.

todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os
grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.

é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande fillho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.

II

o grande filho-da-puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-put,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir um dia a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que já nascem
grandes
e
filhos-da-puta
que nascem
pequenos,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o grande filho-da-puta.

o grande
filho-da-puta
tem
uma grande
visão das coisas
e mostra em tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.

por isso,
o grande filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o grande filho-da-puta.

todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

dentro do
grande filho-da.puta,
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.

é o grande
filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o pequeno filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
o grande filho-da-puta vê
com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja, o grande filho-da-puta."


Para terminar, dois poemas de uma poetisa que, em 1999, recebeu o Prémio Camões: Sophia de Mello Breyner Andresen ou, simplesmente, Sophia.
Felizmente, também ela ainda viva, o que nos permite esperar mais poesia, mais sol, mais mar, que as suas palavras nos dão.

"Com fúria e raiva

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra."

"Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim."

terça-feira, setembro 02, 2003

Roubo


Roubaram-me o Tejo... Fiquei sem rio. Minha janela, agora, é uma parede branca.

O meu local de trabalho é junto ao Tejo, em plena Baixa Pombalina (parte da cidade de Lisboa reconstruída após o terramoto e maremoto de 1755). Quando este edifício foi feito, ainda D. Pedro não havia nascido... (claro, nem a corte pensava em ir para o Brasil. Às vezes penso mesmo se Portugal não seguiu junto com a corte, deixando aqui um retângulo na península com gente falando português só pra fazer pirraça aos castelhanos...). Continuando. Tinha a sorte incrível de ter uma janela larga, virada a poente, com vista sobre o rio e a sua margem esquerda. Na versão original, não era uma janela mas sim a bandeira de uma grande porta. Mas em certo momento, decidiram dividir os pisos em altura. De um piso, faziam dois. O material da contrução original vai resistindo, mas os acrescentos não duram tanto. Assim, tornou-se necessário levantar o soalho que já estava bastante ondulado e aqui e ali cedia. Levanta-se o soalho e vão surgindo as traves carcomidas e as madeiras podres. E o pó! Um pó fino que tudo cobre e em tudo pousa. E a tudo se cola: garganta, nariz, pele...
Os gabinetes onde estão levantando o soalho foram evacuados. E os desalojados tiveram de ser espalhados pelo espaço sobrante. Calhou-me uma arrecadação (ou quase). Tenho um porta de entrada (e, felizmente, saída também...). Sobre mim, as lâmpadas vão cintilando, o que me faz doer os olhos. A dor de cabeça não sei se é dos olhos ou se é do nariz (devido ao pó). Resumindo: tá complicado ter gosto em estar aqui. Acho que vou lá fora ver se o sol ainda está brilhando...

segunda-feira, setembro 01, 2003

Polaroids



1 - Vestal, de botas cardadas, entrando em carruagem de metrô.
2 - Saia branca, comprida, revelando, a contraluz, as longas pernas que recobre...
3 - Dois feijões germinando num algodão humedecido.
4 - Pilha de livros (1): "A Cerca Moura de Lisboa. Estudo histórico descritivo - 3ª Edição", de A. Vieira da Silva (Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1987); "Veinte poemas de amor y una canción desesperada", de Pablo Neruda (Alianza Cien, Madrid, 1994); "Dictionnaire des idées reçues", de Gustave Flaubert (Mille et une nuits, 2000); "Sonetos de Amor", de Luís Vaz de Camões (Princípio Editora, São Paulo, 1993); "Boa Companhia - Contos", vários autores (Companhia das Letras, São Paulo, 2003); "A Trilogia de Nova Iorque", de Paul Auster (edição do jornal Público, Lisboa, 2003); "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury (edição do jornal Público, Lisboa, 2003).
5 - Pilha de livros (2): gibis da Magali. E do Chico Bento. E da Mônica. E do Cascão.
6 - O mar assaltando a praia e levando a areia.
7 - Peixe fresco, alinhado, pronto pra ser escolhido e saltar para as brasas do carvão.
8 – Marte, no céu noturno, brilhando isolado.
9 – Fila, sábado de manhã, na banca dos jornais, pra comprar o semanário Expresso.
10 – Picolé de chocolate pingando em camiseta branca.

domingo, agosto 17, 2003

Saravá!!! Aviso rápido! Estou em ambiente de quase zero tecnológico... Logo que possível, voltarei as dar notícias.

quinta-feira, agosto 07, 2003

Livrarias


Entro numa livraria. Lambo lombadas com os olhos. Lambuzo as lombadas com o olhar. Pego num livro. Capa, contracapa, badanas. Não me seduz. Avanço mais uma prateleira. Repito os gestos. Capa, contracapa, badanas. Abro ao acaso e leio. Sem apelo. Nenhum livro me seduz. Nenhum livro me quer. Como um náufrago, me sinto perdido. Abandonado. Devo ter um ar patético, no meio da livraria e olhando em redor. Hoje, ninguém me quer. Sim, porque não somos nós que encontramos o livro, é o livro que marca encontro connosco. Mais um título. Não, este também não. Desisto. Acho que hoje, eu mesmo vou ter que inventar o livro que quero ler...

quarta-feira, agosto 06, 2003

Dragões


No tempo em que os cavaleiros percorriam os caminhos montados em seus corcéis, no tempo em que nem sempre havia caminhos, no tempo em que os perigos se anteviam com o coração e se combatiam de espada na mão, a Terra era habitada por dragões.
Nas montanhas mais altas, no mais profundo das florestas, protegidos por nuvens e brumas, os dragões nasciam e cresciam em liberdade.
Por vezes, durante o dia, os pastores observavam seu voo nos céus.
Por vezes, durante a noite, os pastores julgavam ouvir seu rugido na floresta.
E contavam estórias. E contavam-se estórias de como esses dragões atacavam seus animais, de como dizimavam seus rebanhos.
Os dragões nada sabiam dessas estórias.
Alguns cavaleiros, desses de coração puro e corcel branco, pernoitavam junto desses pastores. E ouviam suas estórias de dragões. E se impressionavam com essas estórias de dragões. E prometiam luta a esses dragões.
Os pastores se entreolhavam e sorriam.
E os cavaleiros partiam.
Estação após estação, os pastores olhavam o céu. E já não viam dragões.
Estação após estação, os pastores olhavam a noite. E já não ouviam a floresta rugir.
E os pastores se começaram a contar estórias de como cavaleiros, de corcel branco e espada na mão, haviam derrotado os dragões. Todos os dragões. Todos?
A norte, muito a norte, onde os pastos vão rareando, onde os pastores vão rareando, onde as noites são longas, onde as noites são muito longas, há quem afirme ver nos céus os reflexos multicores do sol que arde no centro da Terra batendo nas longas asas dos últimos dragões...

terça-feira, agosto 05, 2003

Muntanya Màgica


Certos locais, um pouco por todo o mundo, parcem ter características mágicas. Energias ou vibrações são libertadas ou guardadas em certos locais. Esses locais são procurados e mais ou menos venerados pelo Homem desde tempos imemoriais. Normalmente, determinadas formações geológicas, como sejam aquelas que se destacam no terreno, reunem essas características. Surgem então as "Montanhas Mágicas" (e não me refiro ao romance de Thomas Mann que, confesso, nunca li). No Rio, temos o Corcovado. Perto de Lisboa, a Serra de Sintra é outro exemplo. A cerca de 30 Km de Barcelona, temos Montserrat.

A zona onde Barcelona está localizada não é propriamente plana. A cidade parece estar, até, rodeada de montanhas. Mas há uma que se destaca das demais: Montserrat. A partir do vale do rio Llobregat ergue-se uma massa sedimentária consolidada, até uma altitude superior a mil e duzentos metros. São "dedos" que se erguem para o céu e onde está instalada uma abadia, onde se presta culto a Nossa Senhora de Motserrat, padroeira da Catalunha. Para católicos e não católicos, Montserrat é também um símbolo de resistência ao centralismo de Madrid. Como muitos outros locais (se não me engano, Portugal incluído) a montanha está protegida pela influência do Arcanjo S.Miguel.

Como se chega aqui? De automóvel é uma maneira. Mas ainda tem que se andar um pedaço desde o estacionamento até à Abadia. De trem, a partir da estação de Sans. Depois, saindo não lembro em que estação, se toma um teleférico (a que chamam aeri) ou, a partir de Monistrol (um pouco mais à frente), a Cremallera. Como o nome indica, é um pequeno trem que sobe (e desce,claro) apoiado em carris e numa cremalheira, que o ajuda a vencer o grande desnível entre a gare de Monistrol (pequena aldeia de ar meio abandonado mas que com a recuperação deste equipamento talvez comece a ver dias melhores...) e o terreiro do santuário (assim ao jeito do Trem do Corcovado). O términus da cremallera é quase em frente da entrada da Abadia. Existem depois várias opções. Visitar a Abadia, prestando homenagem à Virgem de Montserrat, colocando-se na fila que sobe até à imagem da Virgem (colcada atrás e acima do altar), de cor negra, que tem o Menino ao colo, também ele negro. Chegar com a antecedência suficiente (antes da uma da tarde) para, juntamente com os outros fiéis, escutar a Escolanía (já mencionada por Afonso X, o Sábio, no século XIII em algumas das suas canções dedicadas a Montserrat) cantar o Virolai. (Para quem souber ler uma pauta musical, aqui e aqui podem ver poema e música.) Encher-se de coragem e fazer todo o percurso que leva até à Cova onde a imagem foi encontrada pela primeira vez (e onde está também uma imagem da Virgem). Subir no Funicular San Joan, até um local que fica um pouco mais acima da Abadia, e fazer depois a descida a pé (ou no mesmo funicular). Para os desportistas, há a hipótese de fazer escalada. Os caminhos nas rochas estão bem marcados pelas argolas (será esse o nome técnico?) lá deixadas.

Muitas contruções abandonadas indicam que já houve mais vida, mais actividade (espiritual ou não) por entre estes rochedos, mas parece haver um movimento de reanimação de toda a zona. Para quem quiser fazer um retiro espiritual, aqui tem todas as condições. E no Inverno, este deve ser um local bem fresquinho... Agora, Montserrat está assim. Num outro momento, houve quem tenha encontrado um rosto nas formações rochosas de Montserrat. Mas qualquer sítio mágico é assim. O Feng Shui ou os geomantes podem explicar melhor estas coisas.


Catalunha não é apenas Barcelona...
Incêndios. Atualização: 11 mortos, 54 mil hectares ardidos, 100 mil pessoas sem electricidade.

segunda-feira, agosto 04, 2003

O Fogo


Estou quase me sentindo como o cara que deixou de escrever porque cada vez que ele tinha uma idéia, zás!, via que o José Saramago havia tido idéia igual e já havia publicado o romance. Depois de várias inspirações, que ele considerava já terem sido roubadas pelo nobelizado escritor, decidiu colocar-se frente à casa de Saramago, disfarçado como o personagem do romance seguinte que ele idealizava escrever. Desse jeito, queria provar que era Saramago que lhe roubava as idéias e não o contrário...

Esta introdução para falar sobre o fogo. Não é que o Veríssimo pegou no mesmo tema? A única variação está no ponto de vista. Também eu gosto de ruminar cogitações olhando pro fogo. Também eu gosto de ter meu fogo portátil na ponta de um cigarro ou na fornalha no cachimbo. Mas agora, olhando para as manchetes dos jornais, é sobre o fogo-inferno que quero escrever.
Sobre o fogo que não conhece fronteiras e as atravessa com o sopro do vento.
Sobre o fogo que nasce e se recusa a morrer enquanto não consumir quilômetros e quilômetros de mato e floresta.
Sobre o fogo que parece se vingar sobre aqueles que o combatem e mata aqueles que não têm hipótese de o fazer ou de fugir.
Sobre o fogo que destrói habitações isoladas ou entra por aldeias e vilas.
Sobre o fogo que reduz uma vida de trabalhos e canseiras a cinzas e fumo.
Sobre o fogo que as lágrimas do desespero da perda e da impotência no seu combate não conseguem apagar.
Sobre o fogo que parece rugir.
Sobre o fogo que, de dia, quer obscurecer o sol com o seu fumo.
Sobre o fogo que, na noite, se quer substituir ao sol com a sua luz.
Sobre o fogo que cala o cantar dos pássaros e das cigarras.
Sobre o fogo que transforma o verde-esperança em negro-morte.


Sobre o fogo que, de inocente, (alguns) homens teimam em transformar em assassino...


(Em Portugal Continental, nos últimos dias, já morreram nove pessoas, quer no combate aos incêndios, quer alcançadas por estes. Centenas foram deslocadas. Um paiol e uma central termoelétrica estiveram em perigo. Marrocos e Itália já enviaram meios de apoio aéreo. Mais de três mil bombeiros já estiveram em atividade. Até 27 de Julho, já haviam ardido mais de 26 mil hectares de floresta (mas ainda longe dos mais de 124 mil que haviam ardido o ano passado). Já foram encontradas algumas bombas incendiárias, provando a origem criminosa de alguns destes incêndios. Parece que o Governo se prepara para declarar esta uma "situação de calamidade".)

domingo, agosto 03, 2003

Ao que parece, o 1º de Agosto de 2003 ficará na história das temperaturas registradas em Portugal Continental, desde que estes começaram a ser feitos há mais de cem anos: um pouco mais de 47ºC na Amareleja, Alentejo. Em Beja, 45ºC e Lisboa "apenas" com 42ºC. Associando-me ao calor, vou escutando música da Jamaica: reggae na sua versão dub... não estou em Kingston mas o calor ajuda a imaginar.

De acordo com uma citação de Somerset Maugham que li num jornal, ando muito "out" de sexto sentido. Na referida citação ele afirma que "o dinheiro é como um sexto sentido, sem o qual não se pode fazer uso pleno dos outros cinco"...

Les Sardanes


Barcelona. A Catedral. Domingo de manhã. A caminho do terreiro frente à catedral, uma música meio estranha faz-se escutar. A temperatura está elevada. A sombra que a catedral lança sobre o terreiro parece que se vai recolhendo, empurrada que é pelo sol que brilha alto. E vê-se gente dançando. Uma dança de roda. Uma, duas, três rodas. Não mais. Sem sombra, o exercício torna-se difícil. E não são novos, os bailarinos. Um ou outro adolescente, mas praticamente tudo gente com mais de cincoenta. Alguns nos seus setenta. Homens e mulheres. Que bailam? Sardanas...

Todos os domingos pela manhã, junto à Catedral, no espaço fronteiro à sua entrada e, alguns degraus abaixo, no largo que está completamente vedado ao trânsito, grupos de pessoas de todas as idades se reunem para dançar. Podem ser amigos de longos anos ou perfeitos desconhecidos, mas todos podem fazer parte da roda. Dão-se as mãos e dançam. Ao som de um conjunto musical muito específico a que dão o nome de cobla, em saltinhos vão desenvolvendo os seus passos.
Considerada a dança nacional dos catalães, sendo aparentemente simples, a dança requer que um elementos da roda a conduza, isto é, que conte os compassos, de modo a conhecer em que pé deverão finalizar o trecho que dançam e em que pé devem começar o seguinte. Sem descer a muito pormenor, todas as sardanas são compostas de 10 trechos (tirades), sendo 2 curtos (8 compassos cada), 2 longos (16 compassos cada), 2 curtos e 4 longos. Esta indicação de curtos e longos prende-se pois com os compassos e os passos dos bailarinos em cada um desses trechos. Diz-se que qualquer um entra quando quer, mas só pode sair no final da música.

Os meus conhecimentos musicais são limitados, de modo que me limito a transcrever a composição de uma cobla: temos um flabiol-tambor (o flabiol, espécie de flauta de som agudo, tocada apenas por uma mão, é o invariável convite à dança, ficando a outra mão reservada para tocar o tambor que marca o ritmo e vai introduzindo os diferentes temas melódicos), dois tibles, duas tenoras, dois trompetes, dois fiscornes e um contrabaixo. A tenora é o instrumento solista e é uma espécie de oboé, bem como os tibles. Estas coblas são compostas por homens e mulheres, de idades variadas, podendo nós ver adolescentes tocando ao lado de anciãos. Domingo a domingo, as coblas vão variando. Desconheço se se limitam à região de Barcelona ou se vêm mesmo de toda a Catalunha.

Para terminar, um poema de Joan Maragall sobre as Sardanas:

"La sardana és la dansa més bella
de totes les danses que es fan i es desfan;
és la mòbil, magnífica anella
que amb pausa i amb mida va lenta oscillant.

Ja es decanta a l'esquerra i vacilla,
ja volta altra volta a la dreta dubtant,
i se'n torna i retorna intranquilla
com mal orientada agulla d'imant.

Fixa's un punt i es detura com ella...
Del contrapunt arrencant-se novella
de nou va voltant.
La sardana és la dansa més bella
de totes les danses que es fan i es desfan."


A dança acabou, mas Barcelona continua...

sexta-feira, agosto 01, 2003

Rambleando


Les Rambles - as Ramblas - que suavemente descem (subindo, já não parecem tão suaves...) desde a Plaça de Catalunya, podem ser descritas como uma longa avenida, com uma larga faixa central para os passantes/passeantes, uma faixa para o trânsito de cada lado e novamente a calçada para os passantes. Cada troço das Ramblas tem uma "especialização": logo no início, bancas de jornais e revistas, seguem-se depois as bancas das floristas e mais abaixo as bancas dos animais. Aqui, podem comprar-se periquitos, canários, gatos, cães, coelhos, galinhas, peixes, répteis, gaiolas... depois, bem, depois já estava cansado e apanhei o Metrô na estação Liceu. Aqui, do lado direito, está o Gran Teatre del Liceu, teatro lírico que ardeu há bem pouco tempo (acho que em '94) mas que já está completamente recuperado. Montserrat Caballé (alguém se recorda do dueto com Freddy Mercury nas Olimpíadas de Barcelona?) e Josep Carrerras (assim mesmo, Josep e não Jose, pois ele é catalão, o Carrerras dos Três Tenores...) já passaram por aqui várias vezes. Eventualmente (e isto eu não sei) por aqui se terão estreado...

Saindo na estação seguinte, Drassanes, apanhamos o troço final das Ramblas. Esta zona, já perto do porto, tem sido remodelada nos últimos 20 anos. Como qualquer zona tradicional junto a um porto, aqui se concentravam bares e botecos de má fama, por aqui andavam as prostitutas que, como as sereias de Ulisses, iam caçando seus marinheiros (e outros navegadores da noite...). Depois de muita discussão, depois de muita contestação, muitos edifícios foram demolidos, outros recuperados, adquirindo esta zona uma outra fauna. A especialização nesta Rambla é em artesanato e vias alternativas para as tribos urbanas. Descendo mais um pouco em direcção ao mar, se ergue a coluna onde está Colom (também há quem o chame de Colombo...), cerca de 60 metros acima da praça . Todo o mundo brinca com a estátua porque ela está apontando prá Líbia, no norte de África, e não para o Novo Mundo. Vai ver, ele está pontando mesmo é para a China, onde ele julgava ter chegado (grande navegador esse, que nem sabe onde chegou...)

Temos de seguida a zona do porto onde atracam paquetes e ferrys que fazem ligação com as ilhas Baleares (Ibiza, Mallorca, Menorca e Formentera) e onde também se encontra uma marina. A Rambla del Mar liga depois à zona onde está o shopping Mare Magnum, o cinema Imax e o Oceanário.

Voltando atrás, e antes de ir beber água à Font des Canalets, voltei a entrar no metrô para sair no Liceu. À direita de quem sobe, nos embrenhamos no Barri Gòtic. Por aqui, a catedral, várias igrejas, o edifício da Generalitat (aonde assisti a um concerto de carrilhão), o Museu Picasso, entre outras coisas de interesse. Ruas estreitas e sinuosas. Lojinhas tradicionais, lojas "fashion", sebos, antiquários.Por aqui se bebe o melhor (digo eu) café de Barcelona (Xocolatería La Xicra),e há o melhor chocolate do mundo (dizem os barceloneses). Já esqueci (pois este blog não é Amnésia?) o nome de um "shopping" muito interessante, mas creio que é "El Mercadillo". De um edifício para habitação recuperado, nasceu uma zona comercial para as tribos urbanas. Logo na entrada, um dromedário em fibra assinala que o que se segue sai fora do comum. Dance music (techno e trance) servem de banda sonora ao local. Num pequeno jardim interior são servidos "entrepans" (sanduíches), "amenides" (saladas) e outras coisitas... Quem não usar piercings ou tatuagens se sente desenquadrado...

Regressando às Ramblas, passamos para o lado esquerdo. Por aqui, o CCCB (Centre de Cultura Contemporània de Barcelona) onde há alguns anos vi uma exposição sobre Fernando Pessoa. Ótima exposição! Ainda aqui, o Mercat de la Boqueria. Um grande mercado, sob uma grande estrutura de ferro forjado (finais do século XIX). Muita cor, muita higiene, muita organização, muita variedade de (quase) tudo.

Continuando a subida, ainda se vêem lojas com decoração Arte Nova, grande imagem de marca de Barcelona, cujo grande expoente é Antoní Gaudí (2002 foi Ano Gaudí). Até que chegamos à Font des Canalets. Na subida, se vão observando "estátuas vivas", músicos de rua, um casal que dança tango, saídos direto de uma Buenos Aires de imaginário... Aqui pelas Canalets, sempre que o Barça é campeão dalguma coisa, se reunem os "culé" (os aficionados do Barcelona). Como curiosidade, esta cidade é a única em toda a Espanha onde existe um time de futebol que se chama Espanyol. Criado no tempo do fascismo, durante a ditadura franquista, tinha como objectivo afrontar os nacionalistas catalães. Atualmente, e em termos comparativos, o número de sócios é cerca de um terço ou um quarto dos sócios do Barça.

Bebida a água na Font, metrô na Plaça de Catalunya. Várias linhas se cruzam aqui. Um quinteto de cordas, na "praça central" que dá acesso às diversas gares, toca as "Quatro Estações", de Vivaldi. Bons músicos. Acústica excelente. No metrô, a gare parece um forno. A plataforma é estreita. Bancos ao longo da parede. Uma grande tela de plasma, entre linhas, debita publicidade. Entramos na carruagem e é a transição para um freezer... Bem, mas é mesmo assim que funciona a sauna...

E aqui termina a minha "rambleação" (ou rambleació...). Mas Barcelona continua...

quarta-feira, julho 30, 2003

Calor


Será d'eu ou do dia?

Hoje o calor assentou sobre Lisboa como um véu. Não. Como uma almofada. Uma almofada que se deixa cair sobre os objetos e a eles se molda.
O calor se transforma no negativo da cidade. Se transforma no molde da cidade. Réplicas podem sair daqui, vendidas no mercado e com a indicação na etiqueta dizendo: “Made in China”.

Hoje o calor é um afago. Um afago quente. Como um corpo que se encosta no seu corpo. Um corpo que te abraça e em ti se enrosca e em teu ouvido sussurra palavras que vão diretas à tua pele.A pele pede pele. Uma pele quente e seca, macia. O calor é macio.

Você abre a mão, fecha a mão, e toca o calor. Encerra o calor em sua mão. Abre a mão e ele fica ali, na sua frente. Você olha o calor. Vê as coisas através do calor. As coisas mudam de cor. Se suavizam. Se arredondam. O calor é redondo.
Arredonda as coisas. Encurva as coisas. As coisas se encurvam como um peito que sobe quando respira, quando inspira. As coisas inspiram. As coisas respiram. As coisas vivem. As coisas se vivem.
Se se vivem, ainda são coisas? Pois é, o calor que tem destas coisas…

E hoje eu quero sentir esse calor redondo, macio, de corpo de mulher…


Vou pra rua!

Més Catalunya


Ou seja, mais Catalunha. Desde já aviso que não tentarei ser imparcial. Quando se gosta, se gosta mesmo...
Não falarei de toda a Catalunha, claro. E isto porque não conheço toda a Catalunha. Fico por Barcelona e dou uma passadinha por Montserrat (a Montanha Mágica).

Alguém leu o Veríssimo deste domingo? O tabaco é o mote. Claro que vai mais além, mas por coincidência também o é para um cronista do "Avui" (palavra que quer dizer hoje) J. J. Navarro Arisa. (O "Avui" é um diário barcelonês). Para se aperceberem de como é o catalão escrito, aqui vai uma pequena transcrição [o mote são as mensagens de perigo que estão cada vez maiores nos maços de cigarros...]:
"(...) A un altre nivell, estrictament personal i subjetiu, la mesura em desplau i em desagrada profundament. Em nego en rodó a anar pel món amb un paquetet que diu en lletres molt grans que me matarà, me farà partir del cor, perjudicarà el fetus si em quedo prenyat, me reduirà el flux espermàtic i em depararà no només l'oprobi social, sinó una lenta, llarga i bruta agonia seguida d'una mort sòrdida. (...) A més de desagradable, em sembla injust. Si no vaig errat, ningú proposa pintar els cotxes amb grans lletres que diguin "la conducció mata", "els accidents i les imprudències al volant provoquen milers de morts i mutilats" o coses per l'estil (...)."
Que tal?Deu pra entender alguma coisa? O cronista acaba concluindo que vai passar a usar cigarreira, seja de artesanato seja artigo de joalheria, só para não ter que suportar as mensagens...

Em Barcelona, faz-se uma coisa única no Mundo: ramblear. E ramblear é passear nas Ramblas. Na prática, é uma longa avenida, que sobe desde o mar (Rambla de Mar) até à Avenida Diagonal (Rambla Catalunya). A Avenida (ou Avinguda) Diagonal divide, diagonalmente, o L'Eixample em direito e esquerdo e corta a cidade no sentido leste-oeste. Mas tudo isto são alguns quilômetros, de modo que ramblear mesmo é nas Ramblas junto à zona medieval da cidade e que parte da Plaça de Catalunya em direção ao mar. Logo no início, junto à Praça, existe uma grande fonte, de ferro fundido e torneiras em bronze (espero não estar a trocar os metais...), a que dão o nome de Font des Canaletes. Diz a tradição que, quem beber dessa água, regressa a Barcelona. Eu, sempre que vou ramblear, bebo dessa água. O sabor é meio metálico mas, só para ter a justificação para o meu regresso àquela cidade, é como se fosse "champagne"...

Como tá ficando tarde (quase quatro da manhã e o despertador toca às oito...), interrompo agora para depois contar o que se vê pelas Ramblas...

terça-feira, julho 29, 2003

Músicas


Ainda não consigo colocar músicas neste blog, de outro modo estaria rodando sem parar a música que está "consumindo" o laser do meu toca-CD's. Uma música que é um convite. Muito jazzy. Está escondida no CD 2 da compilação "chill:brazil2", organizado pela Joyce. Ramatis com a voz de Rose Max: "Céu Lilás".

"Por quê tanta atenção pra coisas tolas?
Por quê tanto insistir na contramão?
Por quê sempre essa cara de pergunta?
Solte um pouco, pegue em minha mão.

Pra quê todo esse gosto de tristeza?
Pra quê toda essa pôse de pavão?
Pra quê seguir comprando a alegria?
Solte um pouco
embarque na canção

Vem comigo...
aqui é bom, aqui é paz,
sem perigo, é bom demais...
vem comigo,
no mesmo tom do céu lilás,
se eu consigo,
você é capaz...


É bom demais."

E os japoneses continuam se cruzando no meu caminho. Ainda não escutei (pois, só tou escutando o Céu Lilás...) direito, mas tenho aqui um trabalho de Kaoru Inoue, que deve ser a "cabeça" do coletivo "Chari Chari" (de tema pra tema todos os músicos mudam exceto o Inoue). São os sons do mundo, sentidos e transmitidos por este cidadão lá das terras do Sol Nascente. E o trabalho gráfico é uma coisa linda de se ver. Folheando o livrinho, descubro o poema da terceira faixa, "Dil Ki Dharkan":

"Look into your heart and you'll discover a rainbow
Close your eyes and you'll see
All the colours of the world
In harmony

Listen to your heart and you'll discover a rhythm
It's the rhythm of your soul
It's the rhythm of your soul

in the place"

é necessária a tradução?

Catalunya és Catalunya


Esqueçam Espanha. Existe um território com esse nome e onde dizem que se fala espanhol. Não existe "espanhol", existe castelhano. E Espanha é um conjunto de regiões: Galiza, onde se fala galego (e que, do galaico-português, fez nascer o português), País Basco (aqui é fácil entender, né?) onde se vai falando basco cada vez mais, Catalunha, onde se fala catalão. Catalão também se fala na região de Valência e nas ilhas Baleares. Assim, Espanha é um dominó por vezes complicado, mas que se vai mantendo unido sob a coroa de um rei . E como tá ficando tarde, amanhã (espero), continuo neste devaneio...

segunda-feira, julho 28, 2003

E como dizem os Tribalistas no início do seu CD, "Bom dia, Comunidade"!!!
A mala já está aberta mas ainda não está desfeita... mas passei por aqui para dar um "alô" e preparar o mundo para os blogs que se irão seguir, "numa tela perto de você", muito em breve...
Apesar de se estar muito bem em Barcelona (mesmo com o calor, mas mais suportável que na Alemanha), estou de regresso a casa...
Até breve.

terça-feira, julho 22, 2003

Mais um blog da Alemanha. Enquanto der, vou blogando. O dia comecou com chuva, ou melhor, choveu durante toda a noite e continuou chovendo de manha. Temperatura bem mais baixa que no dia anterior mas... a chuva parou, o sol chegou, a temperatura subiu, a humidade voltou e a tarde voltou a colar-se ao corpo...
Foi dia de shopping ou, como dizem aqui, de "zentrum". Mas afinal, quem ve um, ja viu todos...
Jantar, em familia, junto a um lago artificial num complexo de diversoes a que chamam "Miramar". Contingencias de quem tem o mar a centenas de quilometros...