terça-feira, dezembro 09, 2003

Lisbon after the rain



Sempre que chove em Lisboa, mas chuva a sério, forte e durante algumas horas, lembro duas músicas: uma que se chama "Europe After the Rain" (só pelo título mesmo, porque nem lembro como é a música nem qual o grupo... Japan? John Foxx a solo? não lembro... é isso, amnésia...) e outra de Peter Gabriel, "The Flood". Mais uma vez, também não lembro se era do primeiro ou do segundo trabalho dele a solo. Mas pouco importa. É piano e voz. Uma espécie de solidão de náufrago.

Recorrente, é também a minha idéia de Lisboa como uma outra Veneza. Em vez das ruas alagadas, teríamos canais. Numa espécie de convívio permanente com a água, a quadrícula de reconstrução da parte baixa da cidade no século dezoito teria criado canais e não ruas. Existiria um grande porto exterior, um porto para quem entrasse do mar ou viesse descendo o rio; o Terreiro do Paço seria a mesma grande praça, mas rodeada de água, permitindo a entrada nos canais que cortariam a Baixa da cidade; o Rossio seria um pequeno porto interior e, penetrando ainda mais na geografia urbana, braços de ria se alongariam mais para norte. A Baixa seria assim uma sucessão de canais e de pequenas pontes, trazendo uma placidez e silêncio aquáticos a uma cidade feita de luz e reflexos cintilantes, mesmo sob um céu de chumbo.

Mas tudo isto é sonho. Lisboa tem algo que não afeta Veneza: as marés. Enquanto que a capital da lagoa tem variações de maré de alguns centímetros, as marés de Lisboa variam alguns metros... e isso poderia transformar os canais em pequenos regatos ou simples charcos, deixando o lodo à vista e trazendo um cheiro de morte e decomposição à cidade...

Mas Lisboa esqueceu a água, esqueceu o rio, esqueceu a chuva. Esqueceu a sua memória das águas. Transformou suas linhas de água, seus ribeiros e regatos, seus arroios, em caminhos, em estradas, em ruas, impermeabilizadas ao longo do tempo por pedra, por macadame, por alcatrão. Escondeu as suas águas dentro de largos tubos, de largos canos, como se assim, escondendo, esquecesse... Mas a água não esquece seus caminhos. E então, como que gritando sua presença, alaga e inunda seus antigos espaços, reclamando de novo para si o que já foi seu.

Quem ao longo dos séculos tem descaraterizado Lisboa, numa espécie de soberba e sobranceria, não sabe mais como viver a dois: cada um tem seu espaço que deve ser respeitado e mantido, ou então a relação se quebra. E será sempre o elemento mais fraco a sofrer mais..

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