quarta-feira, dezembro 31, 2003

Antes de 2k4



Antes que seja dado como desaparecido, meu último post antes de 2004... antes de partir para Pasárgada (um dos votos para o próximo ano...)

E acabo mesmo com Manuel Bandeira:

"Marinheiro triste

Marinheiro triste
Que voltas para bordo
Que pensamentos são
Esses que te ocupam?
Alguma mulher
Amante de passagem
Que deixaste longe
Num porto de escala?
Ou tua amargura
Tem outras raízes
Largas fraternais
Mais nobres mais fundas?
Marinheiro triste
De um país distante
Passaste por mim
Tão alheio a tudo
Que nem pressentiste
Marinheiro triste
A onda viril
De fraterno afeto
Em que te envolvi.

Ias triste e lúcido
Antes melhor fora
Que voltasses bêbedo
Marinheiro triste!

E eu que para casa
Vou como tu vais
Para teu navio,
Feroz casco sujo
Amarrado ao cais,
Também como tu
Marinheiro triste
Vou lúcido e triste.

Amanhã terás
Depois de partires
O vento do largo
O horizonte imenso
O sal do mar alto!
Mas eu, marinheiro?

- Antes melhor fora
Que voltasse bêbedo!"

terça-feira, dezembro 09, 2003

Lisbon after the rain



Sempre que chove em Lisboa, mas chuva a sério, forte e durante algumas horas, lembro duas músicas: uma que se chama "Europe After the Rain" (só pelo título mesmo, porque nem lembro como é a música nem qual o grupo... Japan? John Foxx a solo? não lembro... é isso, amnésia...) e outra de Peter Gabriel, "The Flood". Mais uma vez, também não lembro se era do primeiro ou do segundo trabalho dele a solo. Mas pouco importa. É piano e voz. Uma espécie de solidão de náufrago.

Recorrente, é também a minha idéia de Lisboa como uma outra Veneza. Em vez das ruas alagadas, teríamos canais. Numa espécie de convívio permanente com a água, a quadrícula de reconstrução da parte baixa da cidade no século dezoito teria criado canais e não ruas. Existiria um grande porto exterior, um porto para quem entrasse do mar ou viesse descendo o rio; o Terreiro do Paço seria a mesma grande praça, mas rodeada de água, permitindo a entrada nos canais que cortariam a Baixa da cidade; o Rossio seria um pequeno porto interior e, penetrando ainda mais na geografia urbana, braços de ria se alongariam mais para norte. A Baixa seria assim uma sucessão de canais e de pequenas pontes, trazendo uma placidez e silêncio aquáticos a uma cidade feita de luz e reflexos cintilantes, mesmo sob um céu de chumbo.

Mas tudo isto é sonho. Lisboa tem algo que não afeta Veneza: as marés. Enquanto que a capital da lagoa tem variações de maré de alguns centímetros, as marés de Lisboa variam alguns metros... e isso poderia transformar os canais em pequenos regatos ou simples charcos, deixando o lodo à vista e trazendo um cheiro de morte e decomposição à cidade...

Mas Lisboa esqueceu a água, esqueceu o rio, esqueceu a chuva. Esqueceu a sua memória das águas. Transformou suas linhas de água, seus ribeiros e regatos, seus arroios, em caminhos, em estradas, em ruas, impermeabilizadas ao longo do tempo por pedra, por macadame, por alcatrão. Escondeu as suas águas dentro de largos tubos, de largos canos, como se assim, escondendo, esquecesse... Mas a água não esquece seus caminhos. E então, como que gritando sua presença, alaga e inunda seus antigos espaços, reclamando de novo para si o que já foi seu.

Quem ao longo dos séculos tem descaraterizado Lisboa, numa espécie de soberba e sobranceria, não sabe mais como viver a dois: cada um tem seu espaço que deve ser respeitado e mantido, ou então a relação se quebra. E será sempre o elemento mais fraco a sofrer mais..

terça-feira, dezembro 02, 2003

as palavras surgem porque a tela está em branco. só. e porque o sol brilha lá fora. as árvores ainda têm algumas folhas mas pouco falta para que a sua nudez seja completa. e essa nudez que também é morte, afinal é vida. é morte que é apenas sono. e com despertar previsto para quando o frio for embora. estou agorinha ouvindo Jeff Buckley. Hallelujah. a transfiguração de uma música original de Leonard Cohen. é a voz de um morto. é a voz da morte. mas afinal voz da vida porque a estou escutando neste momento. e eu não estou morto (aparentemente, pois é isso que meus sentidos indiciam). e vejo esta luz de Lisboa. luz construída diretamente pelo sol e indiretamente por seus raios refletidos no Tejo. luz feita de céu e rio. o azul do céu parece pálido, enregelado, como querendo guardar o calor que o sol vai emprestando a Dezembro. e os barcos sulcando o rio parecem ainda espalhar mais esse calor que se encerra na luz e se multiplica em mil reflexos. como se à superfície do rio boiassem cristais facetados e estes fossem leves como o ar, subindo lentamente e pairando. pairando e esperando que alguém pegue neles e os guarde na palma da mão, fechada em concha. mão que apenas se vai abrir quando o olhar de um amante encontrar outro olhar que com o seu se cruze. então, num momento que não é momento pois vive fora do tempo, olhos nos olhos, abrindo essa mão, deixando pairar o segredo que aí se encerrava, todas as palavras não ditas serão entendidas.

segunda-feira, dezembro 01, 2003

Perambulagem



Vadiando com Paul Auster por Nova Iorque. Vadiando comigo por Lisboa.
Não conheço Nova Iorque . Com Auster tenho a sensação de conhecer. A sensação, apenas, que se desvanece quando fecho o livro. Mas enquanto leio lá vou seguindo pela Broadway até Rua 72, virando depois para a parte ocidental de Central Park e indo pela Rua 59 até à estátua de Colombo para ir novamente para o lado oriental e caminhando ao longo da zona sul de Central Park até Madison Avenue, cortando à direita e descendo até à Grand Central. Tudo fica bem real, "but I just can´t picture the thing..."

Vadiando comigo por Lisboa. Perambulando comigo por Lisboa. Perambular. Palavra bonita, não é? Perambular... menos agreste que vadiar. Perambular nos dá logo a idéia de perda, de perda do sentido que o nosso rumo vai tomando. E esta palavra não entrou no meu léxico há muito tempo. E agora, antes do texto, perdi muito tempo até me lembrar de novo como era mesmo a palavra. Me lembrei antes de escrever e depois esqueci. Amnésia... Tive que me socorrer do Houaiss e, na letra “p”, pacientemente, fui vendo qual a palavra que se encaixava naquele buraco da memória que de repente me havia feito perder a palavra. E fui vendo a quantidade de palavras bonitas que nós temos e não usamos mais. E depois, quando não lembramos a palavra certa, pegamos numa qualquer palavra estrangeira e passamos a usar. Porque se tornou moda. Por esnobismo. Por preguiça. Por desleixo? Os franceses agora estão eliminando a “contaminação” de estrangeirismos. Uma das últimas que eu vi foi a transformação de email em courriel (courrier electronique). Em português como ficaria?

Mas estou perdendo meu rumo... Hoje perambulei um pouco. Pelo Chiado. A minha colina preferida de Lisboa. Deixando o Tejo atrás, subi pela Rua do Alecrim. Já conheci esta rua com mais vida. Agora, alguns dos prédios estão entaipados, "graffittados", talvez destelhados para melhor apodrecerem com a chuva e cairem dentro de um ou dois invernos. É uma das formas de Lisboa mudar: deixar ruir os prédios mais antigos... Ao mesmo tempo, num espaço que eu sempre conheci livre (teve em tempos recuados alguns edifícios mas, ou tiveram o normal destino dos prédios que aqui se diluem quando chove, ou foram mesmo demolidos), surgem novas construções.

Continuo a subida. Chego ao Largo do Barão de Quintela. Um pequeno largo bem simpático. Aqui, uma estátua de Eça de Queiroz. No “seu” Chiado. Afinal, paralela à Rua do Alecrim, está a Rua das Flores, palco de um de seus romances (A Tragédia da Rua das Flores) já publicado postumamente. Bem postumamente, aliás... Do lado direito, um palacete, que pertenceu em tempos ao... Barão de Quintela. Atualmente, pertence ao IADE, Instituto de Arte e Design. Tem um interior bem interessante, tendo algumas salas completamente cobertas de frescos. Mas voltando ao Eça, ou melhor, à sua estátua, uma curiosidade. Há pouco tempo, a prefeitura teve que substituir a anterior, de mármore, por esta que, creio, é de bronze. Razão? Viviam quebrando os dedos da Verdade... Explicando melhor. A estátua é composta por duas figuras: uma figura feminina, quase desnuda (a Verdade) e outra masculina (Eça). A legenda da estátua é “Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diáfano da Fantasia”.

Continuo a subir e chego ao Largo de Camões. Bem, o Largo é à esquerda e eu estou agora entre duas igrejas. No topo poente do Largo de Camões, uma enorme tela cobre um edifício em recuperação. Nessa tela, a reprodução de um dos quadros mais conhecidos de Almada Negreiros: o retrato de Fernando Pessoa, sentado a uma mesa, com seu cigarro, uma chávena de café e os números da revista Orfeu. Viro à direita, e vou descendo. Se virasse novamente à direita, poderia ir ter ao Teatro de São Carlos, o teatro lírico de Lisboa. E foi nesse Largo de São Carlos que nasceu Fernando António Nogueira Pessoa, a 13 de Junho (dia de Santo Antônio, daí o António em seu nome) de 1888.
Mas não virei à direita, fui descendo. Passei a Casa Havaneza, fundamental para quem quiser comprar bom tabaco e charutos, por exemplo. À minha direita, uma estátua do poeta que dá nome a este largo: o poeta Chiado. E na esplanada da Brasileira, antigo lugar de tertúlias, mais uma estátua. Esta, de Fernando Pessoa. Aqui, muitos turistas aproveitam para tirar suas fotos. Porquê? Em tamanho natural, temos o Poeta, sentado a uma mesa da esplanada, tendo a seu lado uma cadeira vazia. Nessa cadeira vazia, muitos aproveitam para se sentar e se eternizar...

Entro na Brasileira e bebo um café. Saio. Continuo descendo a Rua Garrett. Os antigos armazéns que por aqui existiam, morreram. Já não vendem tecidos a metro nem trazem as últimas novidades da moda de Paris. Agora, pertencem a grandes marcas internacionais, como a Benneton.
Passo mais uma igreja e, numa esquina, uma livraria que vai resistindo aos séculos: a Livraria Bertrand. Entro. Sala após sala, vou vendo as novidades. Passo uma sala, e outra e outra. E mais outra e mais outra. Vou vendo os livros e vou folheando. Hoje, nenhum me quer. Saio sem comprar nada.

Antes de continuar a descer, páro um pouco. Para além do edifício dos Grandes Armazéns do Chiado, agora transformado em shopping e em hotel, ainda se vê um pouco das muralhas do Castelo de S. Jorge.
Continuo a descer. Agora, este pedaço da rua é só para pedestres. E, surpresa, alguém toca piano. Na rua! Não será bem na rua, mas sim numa viatura trasnformada. A caixa de ressonância do piano é o próprio veículo, que está cheio de almofadas e de almofadões. Eis a prova de que se pode ouvir um piano em plena rua...

Agora, minha perambulação já tem um objetivo: a FNAC. Deixou de ser perambulação. E por aqui pára meu texto...