Canções e palavras
A música chega até nós de vários modos, ou melhor, apreendemos a música de diversos modos: ou somos influenciados pelo ritmo, ou somos influenciados pela melodia, ou somos influenciados pela voz. Basicamente. Chega uma altura, porém, em que passamos a tomar atenção às palavras que vestem as canções. Ou melhor ainda: as palavras que vestiam as músicas passam a ser palavras vestidas pela música. Aí, tudo se modifica. Ouvimos as palavras, interiorizamos as palavras e a música passa a ser o pretexto para repetirmos essas palavras uma e outra e outra vez, vezes sem conta.
Algo se passa a partir do momento em que as palavras passam a fazer sentido. Deixa de ser uma questão de cuca e de corpo. Passa também a ser uma questão de coração. Surge então a dúvida: eu gosto da canção pela música ou gosto da canção pelo poema?
Existe um livro, de título original “High Fidelity” (Alta Fidelidade), de Nick Hornby, que deu em filme, com o mesmo nome, e cujo director não recordo quem é, mas que tem o John Cusack como protagonista, onde a música desempenha papel principal. A vida se cola com as músicas e as músicas se colam à vida. Como se todos tivéssemos a nossa trilha sonora que nos vai acompanhando em todas as acções. Aí, o protagonista, logo no início, estabelece um Top 5 de garotas que, num ou noutro momento, romperam com ele. A número quatro lhe dá motivos para reflexão: “O que veio primeiro, a música ou o me sentir destroçado [após romper com a número quatro]? Ouvia música porque estava destroçado? Ou estava destroçado porque ouvia música? (…) As pessoas se preocupam com garotos brincando com armas e adolescentes vendo vídeos violentos; nos assustamos que eles sejam tomados por uma cultura de violência. Ninguém se preocupa sobre garotos escutando milhares - literalmente milhares - de canções sobre corações partidos e rejeição e dor e depressão e perda. As pessoas mais infelizes que conheço, do ponto de vista romântico, são as que mais apreciam a música pop; e eu não sei se foi esta música pop que causou esta infelicidade, mas eu sei que eles têm escutado mais músicas tristes do que têm vivido as suas vidas infelizes”.
Algumas páginas mais à frente, nova indicação sobre o seu relacionamento com as músicas. Diz ele: “Para mim, fazer uma fita é como escrever uma carta - há muito apagar e repensar e começar de novo (...) Uma fita com uma boa compilação, assim como romper com alguém, é algo difícil”.
Aqui, volto eu ao início. A partir de que momento começamos a usar as canções como palavras que não dizemos mas que gostaríamos de dizer? Ou melhor, a partir de que momento as canções deixam de ser simples música e passam a expressar o que sentimos? Quando temos alguém a quem desejamos expressar esses nossos sentimentos? Quando temos alguém com quem possamos partilhar esses sentimentos? Quando desejamos ter alguém com quem possamos partilhar esses sentimentos? Quando pensamos que há alguém que pode entender as palavras das canções com nós as entendemos?
Opiniões?
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