quarta-feira, setembro 17, 2003

Cesariny



Ao ver a referência a Manuel Maria Barbosa du Bocage, lembrei-me de colocar aqui um dos poemas que ainda hoje o faz vivo no imaginário popular. Depois, pareceu-me demasiado óbvio. Decidi então não colocar.
Como gosto de Fernando Pessoa, eventualmente poderia cair bem aqui um dos seus poemas. Mas não me recordo de nenhum poema nesta onda bocagiana.
Cheguei então a Cesariny, Mário Cesariny de Vasconcelos. Este, pertence a uma classe especial de poetas: os vivos! Já não é jovem e fez parte do movimento surrealista português (apesar da ditadura, por aqui também tivémos surrealismo). Entende-se facilmente o fio condutor que me trouxe de Bocage até Cesariny através de Pessoa pelo nome do livro onde fui tirar o poema: "O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às Criancinhas Naturais e Estrangeiras por M. C. V.". Aqui, Cesariny, pegando em poemas e textos de Pessoa (e heterónimos), os transforma, os transfigura, os recria em novas formas.
E aqui segue o exemplo:

"É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que um tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d'ir urinar.

Isso eu o quiz dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
«O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é»
Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até).
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Também aquela do «outrora-agora» e do «ah poder ser tu
[sendo eu» foi um bom trabalho
Para continuar tudo co'a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.

M.C.V."

Para não ficarem com uma idéia errada do conteúdo do livro, aqui fica mais um poema do Cesariny:

"Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supôr o que dirá
Tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor - muito melhor! -
Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

M.C.V."

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