sexta-feira, setembro 05, 2003

FDP


Para além do Verissimo, também me habituei a ler o Arnaldo Jabor. E esta semana, ele é demolidor. E universal nos seus conceitos. Nada de dicotomia esquerda/direita. As classificações vão muito mais além. E chegam até aos fdp's. E daqui chego a um poeta português, vivo (nem todos os bons poetas são poetas mortos...), que dá pelo nome de Alberto Pimenta. Para além de poeta, é também um "performer". Entre outras coisas, certa vez passou um dia numa jaula do zoológico, com a indicação no exterior (se bem me lembro) "Homo Sapiens".
Talvez possa ser etiquetado na classe dos "poetas malditos".
No tempo em que apenas existia a TV pública, com dois canais e ainda a preto e branco, quando ela se podia dar ao luxo de ser elitista, sem preocupações com "shares" de audiência nem ibope, teve um programa com o título emprestado de um livro de Teixeira de Pascoaes: "A Arte de Ser Português". Lembro muito pouco dos seus programas, mas recordo-me de um em que ia perguntando às pessoas se sabiam qual o sexo do automóvel que conduziam. As reações da pessoas eram variadas. Depois explicava que os automóveis também têm sexo. E pouco mais recordo...
Mas sobre os FDP, publicou em 1977 uma pequena obra a que deu o nome de "Discurso sobre o filho-da-puta, com notas do "Cisne Branco" em tradução do "Cisne Negro" (antecedido do seu PLANO GERAL e da sua BALADA DITIRÂMBICA)". Teve várias edições e foi até publicado no estrangeiro. No Brasil foi publicado pela editora Codecri, do Rio de Janeiro, em 1983.
Aqui segue a transcrição da balada ditirâmbica, balada esta recorrente em muitas noites de poesia, por vezes quase clandestinas, a que em tempos eu assistia.

"Balada ditirâmbica
do pequeno e do
grande filho-da-puta


I

o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filha-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem
grandes
e
filhos-da-puta
que nascem
pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem
uma pequena
visão das coisas
e mostra em tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o pequeno filho-da-puta.

todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os
grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.

é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande fillho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.

II

o grande filho-da-puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-put,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir um dia a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que já nascem
grandes
e
filhos-da-puta
que nascem
pequenos,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o grande filho-da-puta.

o grande
filho-da-puta
tem
uma grande
visão das coisas
e mostra em tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.

por isso,
o grande filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o grande filho-da-puta.

todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

dentro do
grande filho-da.puta,
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.

é o grande
filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o pequeno filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
o grande filho-da-puta vê
com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja, o grande filho-da-puta."


Para terminar, dois poemas de uma poetisa que, em 1999, recebeu o Prémio Camões: Sophia de Mello Breyner Andresen ou, simplesmente, Sophia.
Felizmente, também ela ainda viva, o que nos permite esperar mais poesia, mais sol, mais mar, que as suas palavras nos dão.

"Com fúria e raiva

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra."

"Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim."

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