sábado, abril 24, 2004

Sant Jordi



Barcelona. 23 de Abril. Dia de Sant Jordi (ou de São Jorge).
Barcelona. 23 de Abril. Dia do livro e das rosas.
23 de Abril. As livrarias invadem as ruas. Bancas de livros alastram para fora das portas e não deixam indiferente quem passa. Ao lado dessas bancas, flores. Muitas flores. "Amanhã, tens que lhe oferecer uma flor e ela tem que te oferecer um livro", tinham-me dito na noite anterior. E assim foi. Festa linda! Flores e livros. Nesse dia, ramblear era também ver livros, flores e escritores.
A 23 de Abril atingem-se picos de vendas, tanto em livros como em flores. Ninguém fica imune. Pelas ruas, cruzamo-nos com pessoas que levam livros ou flores. Ou ambos. Novidades e promoções juntam-se neste dia que, não por acaso, também é o Dia Mundial do Livro. E a profusão de títulos é tão grande em castelhano como em catalão. E talvez aqui resida uma das grandes forças da Catalunha: na sua língua. Recordo-me que Montserrat Roig, escritora e jornalista (infelizmente já desaparecida), afirmou numa entrevista que utilizava o castelhano como língua de trabalho (enquanto jornalista) e o catalão como língua de cultura (enquanto escritora).
23 de Abril. Em Barcelona, é pois um Dia de Resistência: de resistência cultural e resistência ao “ocupante castelhano” (Sant Jordi é o padroeiro da Catalunha… e isto já permite outra estória).

23 de Abril. Na Catalunha, o dia do Livro começou por se celebrar a 7 de Outubro de 1926, por iniciativa do editor e escritor Vicent Clavel Andrés. Esta data celebrava o nascimento de Cervantes. Mais tarde, em 1930, a data passou para 23 de Abril, dia da morte de Cervantes. Neste mesmo dia, morreram também Josep Pla e William Shakespeare. Em 1995, a UNESCO instituiu este dia como Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor. Um dia de celebração nascido na Catalunha transformou-se num dia de celebração mundial...

sexta-feira, abril 23, 2004

Revolução



Estes dias de Abril me modificam. Continuo ainda com esta questão Evolução vs. Revolução. E socorro-me de duas crônicas, uma publicada por Vital Moreira (VM) e que descobri a conselho do Barnabé, e outra de Nuno Severiano Teixeira (NST). Da primeira, transcrevo o primeiro parágrafo:
A meu ver, só a ignorância histórica, o preconceito ideológico ou o interesse político é que pode contestar a natureza revolucionária do 25 de Abril de 1974. Foi uma revolução em todos os sentidos da palavra: na ruptura "ilegal" com o regime em vigor e na inauguração de uma nova era política; na conversão espontânea e imediata de um pronunciamento militar em genuína revolução popular, com maciças movimentações sociais; nas profundas transformações políticas, económicas, sociais e culturais que desencadeou. Deste ponto de vista, o 25 de Abril compara-se favoravelmente com a revolução liberal (1820-1834) e representa uma ruptura muito mais profunda do que a revolução republicana de 1910, que não implicou mudanças económicas e sociais tão intensas. Basta recordar o fim da ditadura e a instauração das liberdades e da democracia; o termo da guerra colonial e a independência das colónias; o fim do nacionalismo e abertura ao exterior, que haveria de culminar com a adesão à então CEE; o fim do centralismo autoritário e o estabelecimento da autonomia local e regional; a abolição do corporativismo e a mudança das relações de trabalho e das relações económicas; as nacionalizações e a reforma agrária e a consequente nova ordem económica (mesmo se posteriormente metamorfoseada pela contra-reforma agrária e pelas privatizações); as radicais transformações nas relações sociais, na família, na emancipação da mulher, nos costumes; a implementação dos direitos sociais, nomeadamente o direito à segurança social e à saúde (designadamente o SNS), bem como a democratização da educação e da cultura.

Sigo com NST, ao refletir sobre as “Políticas da Memória” (título de sua crônica) e a polêmica sobre a Revolução que perdeu o erre:
O debate é tonto, embora o slogan que lhe deu origem - Abril é Evolução - seja tudo menos inocente. Vale a pena, por isso, que nos entendamos sobre os seus objectivos e o seu significado. O debate tem confundido, frequentemente, dois planos que são distintos: o da História, que é uma questão de ciência, e o da memória, que é uma questão de política. No plano da História, a questão não tem qualquer sentido. E não tem sentido porque, pura e simplesmente, não existe. Os historiadores e os cientistas políticos, familiarizados com a literatura sobre os processos de democratização, sabem bem que a democratização portuguesa conheceu dois momentos distintos, ambos fundamentais para a democracia em Portugal. A transição, entre 1974 e 1976, que, ao contrário da generalidade das outras transições democráticas, se caracterizou pela sua especificidade revolucionária. E a consolidação, que, a partir de 1976, se integrou no modelo geral a que Huntington chamou da «Terceira Vaga».
A transição operou-se por ruptura. Por ruptura, nas elites, e por irrupção maciça, na participação popular. Ruptura na esfera política, mas também na esfera económica e social. As lutas em torno do modelo político institucional foram acompanhadas por uma redistribuição brutal e compulsiva dos rendimentos e da propriedade que a Reforma Agrária e as nacionalizações concretizaram. Mas também e, simultaneamente, pela democratização do ensino, a criação do serviço nacional de saúde e do welfare State, com a institucionalização do salário mínimo, das férias e a universalização das reformas. E nem mesmo a dimensão internacional escapou à ruptura revolucionária. Foi ela que pôs fim à guerra colonial e permitiu a descolonização.


Não há dúvidas. Revolução é Revolução. Mas (continuo com NST…)
. Mas nada disto é o que está em causa no debate sobre o 25 de Abril. Porque o que se discute não é a História. É a memória. E é aí que está o não dito. As comemorações não são um acto inocente. Pelo contrário, são um acto político. De política da memória. Uma política que reactualiza a oposição entre a memória individual e a memória colectiva e em que o poder político que comemora se apresenta como o legítimo herdeiro daquilo que comemora. Mais, em que se assume como o intérprete legítimo da memória colectiva. É isso que está em causa no 25 de Abril: a apropriação da memória. A direita contra-revolucionária nunca teve dúvidas de que o 25 de Abril foi uma revolução. Pelo contrário, acentuou-lhe o carácter revolucionário para se demarcar dela. A esquerda também nunca teve dúvidas. O 25 de Abril era património seu e apropriou-se da sua memória. Há depois um centro-direita e por via da coligação uma direita envergonhada, hoje no poder, que se sentem excluídas dessa memória e que se querem apropriar dela. Abril é Evolução é só isso: um instrumento de apropriação da memória.

Neste espaço de amnésia, o que se discute é a memória. E porque ainda há memória, em muitos dos outdoors onde se inscreve o slogan “Abril é Evolução” ao lado de cravos “warholianos”, há quem escreva o erre omitido…

quinta-feira, abril 22, 2004

Xará O'Neill



Nestes dias, vem-me sempre à memória um poema do O'Neill, chamado Portugal:

"Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós..."

Alexandre O'Neill [1965]

Revolução? Evolução? Contradição? Este Portugal anda perdido (ou andamos todos perdidos em Portugal? ou perdidos de Portugal?)... Talvez só eu me sinta perdido...

quarta-feira, abril 21, 2004

Estava cansado. Não recordava há quanto tempo vinha andando. Mas vinha seguindo o rio, em direcção ao mar, como se também ele fosse desaguar nesse amplo abraço. Parou. Na Praça do Comércio virou costas à estátua e tentou encarar o rio de frente. E tentou recordar um Cais das Colunas desaparecido (por mais quanto tempo?), transformado em estaleiro de obras e criando uma espécie de dique para águas podres. Tentou recordar mas não conseguiu. Ah, aquela sua memória… Pigarreou como se fosse falar, esboçou um início de discurso abrindo a boca, mas nada saiu… Manteve-se em silêncio. Continuou a andar. Arrastava os pés, tropeçando em pedras soltas da calçada. Finalmente, aproximava-se do rio… Sentia o vento frio nesse fim de tarde. Cada vez mais cansado, resolveu sentar-se. Os cacilheiros, em vai e vem, iam atracando e largando do cais que ele avistava ali bem perto. Levantou-se e retirou a carteira do bolso. Dinheiro, já não tinha. Apenas documentos. Já amarelados uns, outros com o revestimento plástico riscado e sem brilho. Olhou a sua foto no seu cartão do sindicato. Como era moço… o cabelo lambido pela brilhantina, um sorriso carregado de sonhos… uma lágrima escapou-se dos seus olhos e perdeu-se nas rugas do seu rosto. Atrás de si, o trânsito parado de fim de dia trazia algum silêncio. Continuou a verificar o conteúdo da sua carteira. Para além dos documentos, já quase todos caducados, nada mais. Nem uma foto. Nem um apontamento. Nada mais… Olhou para trás e o trânsito continuava parado. Parado como estava, começou a desvanecer-se. Encolheu os ombros. Virou-se para o rio. A outra margem parecia também estar a desvanecer-se. Estava ele e o rio. Restava ele e o rio. Guardou os documentos na carteira e entalou-a entre duas pedras, salpicadas por pequenas ondas que marcavam a subida do rio com a maré. O silêncio substituiu a paisagem em seu redor. Com dificuldade, levantou-se, sacudindo as pernas que já sentia dormentes. Esticou-se. Olhou para o rio. Em silêncio. O seus lábios moviam-se mas sem articular palavra. Continuou a fitar o rio. E também este se foi desvanecendo…

Lisboa, 20 Abr (Lusa) - O corpo de um indivíduo com cerca de 65 anos apareceu hoje no rio Tejo, junto ao Cais de Santos, em Lisboa, informou a Polícia Marítima, que aguarda a presença do delegado de saúde no local.
Só com a chegada do delegado de saúde é que o corpo será removido das águas do rio, adiantou à Agência Lusa fonte da Polícia Marítima.
O corpo apareceu a boiar no rio às 09:10, adiantou a fonte, acrescentando que a identidade do indivíduo é desconhecida.
SB.
Lusa/fim


Abril. 25. 30 anos



Com a regularidade da Páscoa ou do Natal, que também se celebra num dia 25, chega o mês de Abril e o dia 25, que desde 1974 foi batizado de "Dia da Liberdade".
Trinta anos se passaram já... como o tempo parece correr... e com o tempo que corre vai ficando a memória mais baça... a poeira se vai acumulando sobre os dias que vão passando e a amnésia se vai instalando...
Multiplicam-se agora jornais e revistas em edições e reedições especiais. É a "memorabilia" desses dias vividos a quente. Publicam-se coletâneas das músicas que traziam a revolução para a rua e o povo para a festa. É isso que eu melhor recordo: a música e a festa. A confusão dos dias sem rotina, onde tudo era novo. E novo para mim, por dois motivos: porque era criança e porque para os adultos também era novidade.
Trinta anos... Trinta anos que o atual governo quer transformar de Revolução em Evolução. Transformar Revolução em Evolução? Esta transformação me causa desconforto. Parece o retocar de uma foto antiga, onde se tentam apagar marcas que não agradam aos olhos contemporâneos. Como quem retira os cigarros das fotos antigas de André Malraux. Ou faz desaparecer a imagem de Trotsky. Será o estalinismo na comunicação?
Evolução? Esta palavra ainda me causa mais arrepios porque me faz recuar à idéia de progresso do Séc. XIX: aquele progresso que iria trazer conforto e bem-estar a todos. Não sei se é porque o sol hoje brilha pouco, mas o único progresso mais evidente que eu recordo está nas máquinas de guerra: a distância a que se projeta a morte é cada vez maior, resultando daí menos conflitos morais para quem ordena essas ações de morte.
Evolução? Numa população de 10 milhões, são 200 mil os pobres. E utilizando como parâmetro o indicador da União Européia, mais de 50% da população portuguesa é pobre.
Evolução? Sim, os sonhos não cumpridos foram esquecidos e cada um por si vai fazendo pela vidinha.
"O Povo Unido Jamais Será Vencido!"
O Povo quê? Unido? "Dividir para reinar" parece ser agora o lema. Há que desenvolver o individualismo. Pois o importante não é o indivíduo? Como se a resultante do somatório das partes fosse maior que esse todo em conjunto...
Evolução? É. Deve ser porque o dia está cinza, mesmo...
Recordo a Revolução. Não entendo de que Evolução estão falando...