Estava cansado. Não recordava há quanto tempo vinha andando. Mas vinha seguindo o rio, em direcção ao mar, como se também ele fosse desaguar nesse amplo abraço. Parou. Na Praça do Comércio virou costas à estátua e tentou encarar o rio de frente. E tentou recordar um Cais das Colunas desaparecido (por mais quanto tempo?), transformado em estaleiro de obras e criando uma espécie de dique para águas podres. Tentou recordar mas não conseguiu. Ah, aquela sua memória… Pigarreou como se fosse falar, esboçou um início de discurso abrindo a boca, mas nada saiu… Manteve-se em silêncio. Continuou a andar. Arrastava os pés, tropeçando em pedras soltas da calçada. Finalmente, aproximava-se do rio… Sentia o vento frio nesse fim de tarde. Cada vez mais cansado, resolveu sentar-se. Os cacilheiros, em vai e vem, iam atracando e largando do cais que ele avistava ali bem perto. Levantou-se e retirou a carteira do bolso. Dinheiro, já não tinha. Apenas documentos. Já amarelados uns, outros com o revestimento plástico riscado e sem brilho. Olhou a sua foto no seu cartão do sindicato. Como era moço… o cabelo lambido pela brilhantina, um sorriso carregado de sonhos… uma lágrima escapou-se dos seus olhos e perdeu-se nas rugas do seu rosto. Atrás de si, o trânsito parado de fim de dia trazia algum silêncio. Continuou a verificar o conteúdo da sua carteira. Para além dos documentos, já quase todos caducados, nada mais. Nem uma foto. Nem um apontamento. Nada mais… Olhou para trás e o trânsito continuava parado. Parado como estava, começou a desvanecer-se. Encolheu os ombros. Virou-se para o rio. A outra margem parecia também estar a desvanecer-se. Estava ele e o rio. Restava ele e o rio. Guardou os documentos na carteira e entalou-a entre duas pedras, salpicadas por pequenas ondas que marcavam a subida do rio com a maré. O silêncio substituiu a paisagem em seu redor. Com dificuldade, levantou-se, sacudindo as pernas que já sentia dormentes. Esticou-se. Olhou para o rio. Em silêncio. O seus lábios moviam-se mas sem articular palavra. Continuou a fitar o rio. E também este se foi desvanecendo…
Lisboa, 20 Abr (Lusa) - O corpo de um indivíduo com cerca de 65 anos apareceu hoje no rio Tejo, junto ao Cais de Santos, em Lisboa, informou a Polícia Marítima, que aguarda a presença do delegado de saúde no local.
Só com a chegada do delegado de saúde é que o corpo será removido das águas do rio, adiantou à Agência Lusa fonte da Polícia Marítima.
O corpo apareceu a boiar no rio às 09:10, adiantou a fonte, acrescentando que a identidade do indivíduo é desconhecida.
SB.
Lusa/fim
quarta-feira, abril 21, 2004
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