domingo, julho 25, 2004

Pés



Hoje, me lembrei de falar sobre pés. E isto porque gosto de andar descalço.
Ninguém espere encontrar aqui referências a fetiches. (Fetiche. Palavra engraçada, esta. De origem, é uma palavra portuguesa: feitiço. Importada pelos franceses, se transformou em “fetiche”. Reintroduzida para esta nossa língua, ganhou autonomia e a especificidade de algo que se transforma de “operativo” (feitiço) em “objeto” (fetiche), com conotações mais ou menos sexuais).
Também ontem vi uma notícia sobre o restauro da estátua de David, retirada da pedra por Miguel Ângelo há já algumas centenas de anos. E apresentavam a foto daquele pé enorme…
Depois, porque me faz confusão ver quem use havaianas com salto! Realmente, os pés e respectivo calçado podem dizer muito sobre a cultura dos povos.
Recordo que quando estive em Helsínquia, capital da Finlândia, me causou espanto um sinal junto a umas escadas rolantes: era um daqueles sinais de proibição (redondo, com bordadura a vermelho e risca oblíqua também vermelha) onde, a negro, mostravam um pé descalço. Entre outros sinais, havia ainda um outro de proibição de utilização por quem calçasse patins em linha. Vendo esse sinal, passei a ficar mais atento. Porquê o pé descalço? (Aqui nesta cidade, numa livraria – desenhada por Alvar Aalto, famoso arquiteto – encontrei uma moça que falava português! Em nenhuma livraria daqui vou encontrar alguém a falar finlandês...) E comecei a ver pessoas andando descalças pelas ruas. E não tinham botas ou sapatos a tiracolo para calçar depois. Não. Dava a idéia de que tinham saído de casa assim mesmo. E não pareciam ter problemas financeiros! Era opção mesmo. Apesar de ser um país escandinavo (para mim, Escandinávia é sinônimo de frio…), enquanto estive em Helsínquia (era Junho), a temperatura foi sempre muito agradável. E nessa altura, com tanta gente de celular pendurado no ouvido, até parecia que estava em Lisboa! Mas voltando aos pés, estar ou não calçado é, mais do que comodidade, uma questão de cultura.
Não faz muito tempo (e para mim, dizer “há trinta anos” está nesta categoria), especialmente nas zonas rurais daqui, todo o mundo andava descalço. Sapato era apenas colocado como manifestação de respeito pelo lugar aonde iam ou da pessoa com quem iam falar. Me recordo que quando visitava meus primos (no sítio), eles andavam sempre descalços. Só se calçavam pra ir à cidade ou para a escola. Eu, menino da cidade, fiz uma vez a experiência. As pedrinhas do caminho faziam doer meus pés. Mas eu fui resistindo. O problema era dar alguma topada numa pedra!
Depois, me lembrei da “História Trágico-Marítima” e do naufrágio de Sepúlveda (ou, por extenso, “Relação da mui notável perda do galeão grande S.João, em que se contam os grandes trabalhos e lastimosas coisas que aconteceram ao capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e sua mulher e filhos e toda a mais gente houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de 1552”). Recordava eu que a mulher havia morrido de vergonha por, simplesmente, ter ficado descalça. Fui confirmar. Leitura feita meio na diagonal, verifiquei que ela morreu de vergonha sim, mas por ter ficado nua. “(...) E vendo-se D.Leonor despida, lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com os seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até à cintura, sem mais se erguer dali. (...)”
Pés. Temos que tratar bem deles, para que eles não nos deixem ficar mal...

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