quarta-feira, junho 25, 2003

Não sei



Quando não sei que forma dar às palavras dos meus pensamentos, acoito-me sob São Pessoa. E ele não é um apenas um santo, é todo um panteão...
Com nome de santo, pois António também consta da sua cédula, escreveu tudo o que um dia desejei ter escrito.

E caio sempre no mesmo poema, como um sorvedoiro. Poema que Harry, ou o Lobo das Estepes, também poderia ter lido no "Tratado", soubesse ele ler português...
Tivesse o Engenheiro escrito o "Tratado" "Só para loucos"...

E o sorvedoiro começa...

"Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visí­vel e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando entre as últimas notí­cias dos jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princí­pio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alí­vio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos quí­mocos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema fí­sico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

26/4/1926"

E chega depois o Tratado do Lobo das Estepes, o auto-retrato de Harry lido por ele próprio. Ou será ele o meu auto-retrato? Assustei-me quando o li pela primeira vez: este, sou eu?
"(...) Um outro [dos sinais mais distintos da sua vida] era contar-se entre o número dos suicidas. Diga-se a propósito que é errado chamar suicidas apenas àqueles que na realidade põem termo à vida. Entre esses há muitos até que em certa medida só por acaso se tornam suicidas, muitos cuja natureza não comporta necessariamente o suicí­dio. Entre os homens sem personalidade, sem cunho marcado, sem destino vincado, entre essas dúzias, milhares de homens, há quem acabe por suicí­dio, sem por isso,p or tudo aquilo que os marca e caracteriza, pertencerem ao tipo dos suicidas; em contrapartida, entre aqueles que pela sua essência cabem entre os suicidas, muitos, talvez a maior parte, jamais atentam realmente contra a sua vida. O "suicida" - e Harry era-o - não tem necessariamente de viver numa relação particularmente acesa com a morte - isso também pode acontecer sem que se seja suicida. Mas é próprio do suicida sentir o seu eu, com ou sem razão, como germe da natureza especialmente perigoso, equí­voco e ameç§ado, como se estivesse suspenso no mais afilado cume de um rochedo onde um ligeiro toque do exterior ou a mí­nima fraqueza do interior bastariam para o precipitar no vácuo. Esta casta de pessoas distingue-se, na sua linha de destino, por ter o suicí­dio comogénero de morte mais provável, pelo menos na sua própria concepção(...)"

E as palavras de Álvaro de Campos e de Herman Hesse vão turbilhonando, misturando-se em ecos, colando-se como se fossem pedaços de um mesmo texto mais longo.
Um texto que não escrevi mas que vou reescrevendo, tornando-me também eu autor, actor desta farsa.
La vida és sueño?

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