sexta-feira, janeiro 30, 2004

Lost 2...



a melhor relação é aquela em que não somos obrigados a preencher o silêncio com palavras...

quinta-feira, janeiro 29, 2004

Lost...



Num momento de rara disponibilidade, consegui ir ao cinema no último sábado. E que filme ver? Depois de tantas recomendações indiretas (jornais, revistas e blogs), a escolha pareceu-me óbvia: "Lost in Translation". Ou "O Amor é um lugar estranho" (Portugal). Ou "Encontros e desencontros" (Brasil). Ou “Dois Americanos em Tóquio” na proposta de João Lopes (crítico de cinema e de imagens).

Com um Bill Murray (Bob) parecendo interpretar o papel de "Bill Murray goes to Tokyo". Com a jovem Scarlett Johansson (Charlotte) como a desconhecida (e que para mim se encaixa perfeitamente, pois não me recordava de a ter visto anteriormente. Engano. Já a tinha visto no “The Horse Whisperer”, com o Robert Redford e a Kristin Scott Thomas) que o encontra.

Porquê “perdido na tradução” (título original)? Esse é o primeiro choque de Bob (personagem de Murray) quando, quer durante as filmagens do comercial ou durante a sessão fotográfica, depois de ouvir longos discursos em japonês, vê tudo resumido a uma simples e pequena frase. Ou quando uma pequena frase sua se transforma num longo discurso da sua tradutora. Questão (que se apercebe na sua expressão): o que é que se perdeu nesta tradução? O que é que eu deveria saber e não sei?

É um filme de náufragos. Que o são e não sabem. E é normalmente num bar de hotel que se reúnem os despojos dos náufragos que ainda conseguem chegar à praia.

Um filme de sensibilidade e de sensibilidades: da realizadora, dos atores, do público.

Dois casamentos. Ambos perdidos (os personagens e os casamentos). Ambos agindo como se fossem estranhos numa terra estranha. Tudo parece deixar de fazer sentido, exceto aquelas duas pessoas, quando se encontram. E que certamente nunca se cruzariam se não tivessem naufragado em Tóquio...

Duas solidões (das piores solidões, daquelas que nos obrigam a ficar conncosco e a entender, finalmente, que afinal não sabemos onde estamos).

O momento do encontro de ambos é desencontrado. Primeiro, é Bob, no elevador, que encontra Charlotte. Mais tarde, é Charlotte, no bar, que encontra Bob. E é também no bar que Bob é encontrado pela cantora de serviço (e eu acho que os cantores de bar de hotel são deprimentes e que as músicas de bar de hotel são deprimentes, qualquer que seja a música, qualquer que seja o hotel, qualquer que seja o país). Esse encontro com a cantora conduz a relação entre Bob e Charlotte a um outro patamar (ou não?). E permite a Charlotte, durante um almoço (daqueles que não correm muito bem), “agredir” Bob com algumas frases irónicas (como se a ironia habitual em Bill Murray cedesse lugar à de Scarlett...).

Música. Já falei da música deprimente do bar do hotel. Falo agora do karaoke. Essa cena define a situação de ambos: numa primeira música cantada por Bob (que eu não consegui identificar), este parece se confessar perdido; com o “Brass in Pocket” (dos Pretenders), Charlotte seduz; finalmente, com o “More than this” (Brian Ferry), Bob se rende.

O final... não, não vou falar sobre o final.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Dali



Para os mais distraídos, 2004 é o ano DALI...
A Catalunha está aí de novo!!!
(Que tal uma saltada a Barcelona?)

terça-feira, janeiro 20, 2004

Sophia, Fiama e Unamuno



Hoje trago mar. E três poetas: Sophia de Mello Breyner Andresen, Fiama Hasse Pais Brandão e Miguel de Unamuno.

O poema de Sophia, retirado de O Búzio de Cós e outros poemas

“Beira-Mar

Mitológica luz da beira mar
A maré alta sete vezes cresce
Sete vezes decresce o seu inchar
E a métrica de um verso a determina
Crianças brincam nas ondas pequeninas
E com elas em brandíssimo espraiar
Em volutas e crinas brinca o mar”



Os poemas de Fiama, saídos de Cenas Vivas

“Rias

O caminhar pela areia sem caminho,
indo ao sabor dos recortes e marinhas.

Ao sul ou norte de um país marítimo,
era um tempo passageiro esse
do caminhar pela areia sem caminho.

Baixa se estendia a água.
Deitada no chão, a sombra era bebida
por essa água pouca, areia ávida.”


“Leituras em Novembro

O mar bate como se o sopro
do separar das águas de novo
rasgasse a terra alcantilada.
Não o vejo, mas ao longe
oiço, no êxtase, o rumor
das ondas infinitamente.
Depis calamo-nos ouvindo
a voz interior apenas e pensamos
nos livros que consubstanciam
a separação entre a terra e a água.”


“Espaços

Todas as coisas e seres
são dados aos poemas e exigem estar.
Próximas paisagens distantes,
seres presentes.
Entre o aparo e a escrita.
Próxima, não a respiração
mas a presentificação das coisas,
infindos riscos.”


“Nuvens

Nuvens mostram-nos ao longe
a ficção de serem formas cénicas.
Mesmo rostos podem nascer ali
debaixo de madeixas claras.
Risos podem rasgar-se, entre
raios de sol e sombra. Essa,
por vezes, a vida frágil dos risos.”

(os poemas acima foram pilhados daqui)


Acabando com Unamuno, retirado da sua Antología poética
(Nota - como não consigo manter a mancha gráfica original dos poemas, faço o arranjo clássico de soneto...)

“XXXIV

La mar ciñe a la noche en su regazo
y la noche a la mar; la luna, ausente;
se besan en los ojos y en la frente;
los besos dejan misterioso trazo.

Derrítense después en un abrazo,
tiritan las estrellas con ardiente
pasión de mero amor y el alma siente
que noche y mar se enredan en su lazo.

Y se baña en la oscura lejanía
de su germen eterno, de su origen,
cuando con ellas Dios amanecia,

y aunque los necios sabios leyes fijen,
ve la piedad del alma la anarquía
y que leyes no son las que nos rigen.”


“LII

Dime qué dices, mar, qué dices, dime!
Pero no me lo digas; tus cantares
son, con el coro de tus varios mares,
una voz sola que cantando gime.

Ese mero gemido nos redime
de la letra fatal y sus pesares,
bajo el oleaje de nuestros azares
el secreto secreto nos oprime.

La sinrazón de nuestra suerte abona,
calla la culpa y danos el castigo;
la vida al que nació no le perdona;

de esta enorme injusticia sé testigo,
que así mi canto con tu canto entona
y no me digas lo que no te digo.”

sexta-feira, janeiro 16, 2004

Este dia chama a melancolia e a saudade...
Este tempo assim, de chuvinha miudinha, mais ou menos constante durante todo o dia, traz-me recordações do tempo em que vivi nos Açores, mais propriamente em São Miguel.
Aqueles dias pardacentos, em que o tempo parecia imóvel, tornavam a ilha ainda mais ilha. E a nós, mais ilha dentro da ilha. Mas agora, não sei bem porquê, gostaria de estar lá, vivendo novamente esses dias... Neste momento, estou me sentindo um açoreano em exílio...
(Fim de tarde, 12 de Janeiro)

Como é que pode haver pragmatismo com esta luz irreal de Lisboa? Neste momento, apenas me assalta a memória a cena do "Spirited Away" (ou "A Viagem de Chihiro") em que no final do dia os deuses vão desembarcando e se vão materializando à medida que a noite cai e as luzes se vão acendendo.
Num céu quase coberto de nuvens negras, há uma zona onde ainda se vê parte do azul do céu e do rosa do poente colorindo as nuvens mais altas. Não é dia. Não é noite. É mesmo a "Twilight Zone"...

quinta-feira, janeiro 15, 2004

Nacos de prosa, nacos de Portugal



Como já anteriormente referi, comprei um livro no último dia do ano. Numa livraria nova, a Clepsydra, e com um ótimo atendimento. Mário de Carvalho e a sua "Fantasia para dois coronéis e uma piscina". Um filme em forma de romance.

Como exemplo do gozo que me tem a sua leitura, deixo aqui dois nacos de prosa que são, também, um retrato deste país...

Assim começa:
"Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros. Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu do Monchique fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividades e más-criações.
Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e decibéis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão.
Falam os médicos, os notários, os empreiteiros, os varredores, os motoristas, os professores e toda a lista de profissões de estatística e não há corporação que fique de fora neste zunzunar do paleio, vendedores de automóveis, mediadores de seguros, sapateiros que passam a vida a cantar, empregados de mesa, agentes da autoridade, doentes dos hospitais, operadores imobiliários, empregados forenses, e também engenheiros, sem-abrigo, vagabundos, telefonistas, padeiros, patinadores, engraxadores e vândalos. Imigrantes provindos de países sombrios aprendem aqui a soltar as línguas, aderem ao velho ofício de dar à taramela, por isto e por aquilo, por tudo, nada. Passam-se dias, meses, anos, remoem as depressões, adejam os perigos e o país a falajar, falajar, falajar." (pp. 11 e 12)

E mais à frente:
"Entre a poeirada de adversidades que ensombram e inquinam a já de si pequenina qualidade de vida dos portugueses existe uma prática ilegal e, portanto, livremente exercida, chamada «estacionamento em segunda fila». Consiste em alinhar automóveis ao lado daqueles que já estão arrumados, bloqueando-lhes a saída. Em Portugal, em qualquer ocasião, sempre que ao olhar se oferece um bom lugar, é mister fazer-lhe a crítica e interrogá-lo extensamente. Há campo para sair pelo lado do passeio? Há espaço suficiente para?... Convém antecipar todas as malfeitorias aptas a impedir-nos de usar de um direito ou de uma facilidade. Porque é evidente que as circunstâncias da lusa vivência não consentem que um cidadão deixe o seu carro bem estacionado e vá, descansado, à sua vida. Isso seria demasiado simples. E a simpleza repugna aos portugueses. Deixar alguém na despreocupação? A fruir dos seus direitos? Isso é antilusitano. O bom cidadão deve sofrer a grosseria dos seus conterrâneos, sujeitar-se a ver todas as legítimas expectativas malogradas e guardar-se para a sua própria vez, quando tiver ocasião de tirar desforço e lesar triunfalmente a comodidade do próximo." (p. 53)

Continuarei com mais nacos, noutro dia...

quarta-feira, janeiro 14, 2004

Hoje, um livro veio ter comigo. Andava procurando uma coletânea de poesia da Christina Georgina Rossetti (irmã do pintor Dante Gabriel Rossetti) que tinha visto antes do Natal, na FNAC. Desapareceu. Talvez volte um destes dias...
Christina Rossetti é autora daquele poema "When I am dead, my dearest," poema de morte mas não poema triste...

"When I am dead, my dearest,
Sing no sad songs for me;
Plant thou no roses at my head,
Nor shady cypress tree:
Be the green grass above me
With showers and dewdrops wet;
And if thou wilt, remember,
And if thou wilt, forget.

I shall not see the shadows,
I shall not feel the rain;
I shall not hear the nightingale
Sing on, as if in pain:
And dreaming through the twilight
That doth not rise nor set,
Haply I may remember,
And haply may forget."

Aproveito e deixo a tradução de Manuel Bandeira:

"Em minha sepultura,
Ó meu amor, não plantes
Nem ciprestes nem rosas;
Nem tristemente cantes.
Sê como a erva dos túmulos
Que o orvalho umedece.
E se quiseres, lembra-te;
Se quiseres, esquece.

Eu, não verei as sombras
Quando a tarde baixar;
Não ouvirei de noite
O rouxinol cantar.
Sonhando em meu crepúsculo,
Sem sentir, sem sofrer,
Talvez possa lembrar-me,
Talvez possa esquecer."

Mas estava eu contando a minha estória do livro que me encontrou. Pois estava eu buscando os poemas da Rossetti quando me chega aos olhos um livro de lombada fina, onde se destacava a palavara "Unamuno". E também "Antologia poética". De Unamuno, D.Miguel de Unamuno, só conhecia a sua vertente filosófica, a sua amizade com, entre outros, Teixeira de Pascoaes, e a sua caracterização de Portugal como país de suicidas (Antero e Manuel Laranjeira, por exemplo). Pouco mais. Descubro então este livrinho da "Biblioteca Unamuno" da Alianza Editora (esta editora também tem Borges e Bioy Casares em formato de bolso).
Abro o livrinho e vou descobrindo as palavras. E com poemas (com o mar) de Sophia e Fiama ecoando, depois de mais um lindo fim de tarde, este é o primeiro poema que leio...

"Horas serenas del ocaso breve,
cuando la mar se abraza con el cielo
y se despierta el inmortal anhelo
que al fundirse la lumbre lumbre bebe.

Copos perdidos de encendida nieve
las estrellas se posan en el suelo
de la noche celeste y su consuelo
nos dan, piadosas, con su brillo leve.

Como una concha sutil perla perdida,
lágrima de las olas gemebunda,
entre el cielo y la mar sobrecogida

el alma cuaja luces moribundas
y recoge en el lecho de su vida
el poso de sus penas más profundas."

Folheio mais um pouco. Pronto. O livro já me encontrou. O livro já me escolheu...

quarta-feira, janeiro 07, 2004

Pão Comanteiga



Desde já, agradeço os comentários ao meu penúltimo texto aqui publicado.
Graças à Cristiana, descobri que existe um blog (ou quase blog) de Artur Couto e Santos onde se podem resgatar pérolas do Pão Comanteiga. O Nuno Catarino também fala de jazz, pretexto para falar de outras coisas também.

Pegando então na dica da Cristiana, e investigando no coiso, cá vão mais algumas informações sobre o Pão Comanteiga, resgatadas das memórias de Artur Couto e Santos.
Idéia original de Carlos Cruz, José Duarte e Mário Zambujal, tinha começado a ir para o ar, das 10 às 13 horas de domingo, na Rádio Comercial, em 1980. O grupo inicial, além desses três, também incluía Eduarda Ferreira, Orlando Neves e Bernardo Brito e Cunha (o BBC). Quando Artur Couto e Santos se juntou à trupe, já tinha saído o Orlando Neves, e entrado Joaquim Furtado e José Fanha. Os textos nasciam do seguinte modo: a equipa se reunia e escolhia uma dúzia de temas para os programas seguintes, calendarizando-os. Depois, cada um ia para casa puxar pela cabeça. A meio da semana, se reuniam novamente, e entregavam os textos todos a Carlos Cruz (o chefe), que procedia à sua leitura e escolha, tanto dos que iriam ser lidos como daqueles que iriam para o lixo, quer porque achasse não terem qualidade suficiente, quer porque não se sentia muito confortável ao lê-los. No domingo de manhã, na Rádio Comercial, quase todos os elementos da equipa lá estavam apoiando o chefe naquelas três horas (e com uma multidão de fiéis ouvintes do lado de cá, bebendo as palavras e rindo, rindo...)

Aqui seguem alguns exemplos saídos da pena de ACS (nota - para um entendimento completo, e uma vez que as frases foram escritas para serem ouvidas, elas deverão ser lidas em voz alta):
“- Um urso polar não é nada de especial. Se ainda fosse um urso voar!…
- Um esquilo levezinho não passa de um esgrama…
- Mas afinal, o leão ruge ou pó de arroz?…
- Se o cachorro estiver quente, primeiro búfalo e depois come-lo.
- Quando pintar a sua casa, dê a primeira demão, a segunda de pé e a terceira sentado.
- Deus escreve direito por linhas tortas. Deve ser difícil; por isso mesmo é Deus…
- De todas as linhas, as que eu prefiro são as Mane-linhas, as Car-linhas e as Pau-linhas…
- Mais difícil do que ler nas entrelinhas é escrever nas linhas, de modo a que se leia nas entrelinhas.
- No litoral, não se deve usar roupa interior.
- À hora do chá, use sempre tea-shirt
- Se o burro tem quatro patas, a pata tem quatro burras?
- Albardar um burro é fácil; aldrabar um burro é ainda mais fácil.
- Dois concursos e picos quantos concursos hípicos são?
- Sansão tinha toda a sua força nos cabelos. Foi isso que desiludiu Dalila.
- O provador de vinhos é o único profissional autorizado oficialmente a beber nas horas de serviço.
- Júlio César tinha sede de poder porque ainda não conhecia o gin tónico.
- Diana era a deusa da caça. Mais uma vez, a cedilha salvou a situação!
- Há quem crie fama e se deite na cama; há também quem crie fama porque se deita na cama…
- Tenha cuidado: um corpo celeste não tem nada a ver com o corpo da Celeste.
- E fique sabendo que o contrário de largo não é estreito - é ogral.
- Quando um homem se vira do avesso é uma vergonha - vê-se-lhe tudo…
- A diferença entra aranha e aranhiço é…iço.
- Foi Diogo Cão quem disse: “Eu sou o melhor amigo do homem!”
- Primeiro, partiram as naus. Depois, deitaram os pedaços ao mar.
- A galinha dos ovos de ouro tinha um rico rabo…
- Quando o céu é de chumbo, os aviões amolgam-se.
- Pedra preciosa foi a que David atirou a Golias.
- Era um vigarista tão requintado que vendeu gato por lebre e o freguês, quando chegou a casa com o frango, assou o peru, convidou os amigos e, ao provarem o pato, todos acharam que sabia a faisão”.


Mais uma vez, esclareço que as informações e frases acima foram descaradamente copiadas daqui.

terça-feira, janeiro 06, 2004

Não é propriamente a Itapoã do Poeta, mas está um fim de tarde magnífico aqui à beira-Tejo (e este não é à beira-mágoa...).
A outra margem do rio é uma mancha difusa, recortada contra um céu que se vai tornando alaranjado. O sol entra direto no meu gabinete e cola a minha sombra contra a parede. Aqui no player vai rodando Yann Tiersen, com a sua "Comptine d'une autre été". Um cacilheiro atracado aguarda passageiros, baloiçando docemente nesta tarde sem vento.
O sol agora se vai escondendo atrás dos ramos nus de algumas árvores, que ainda teimam em manter algumas folhas, certamente na dúvida se é o Inverno ou já é a Primavera.
A janela, aberta de para em par, não traz o frio. Mas traz o ruído do tráfego que parece rodar em desespero.
Agora, também o rio vai tomando a cor ao céu e varia entre o dourado e o cinza-azulado. Mas sempre brilhante.
Um cacilheiro largou e outro já tomou seu lugar. Lentamente, vai riscando o rio. Pouco a pouco, esse traço se perde nas pequenas ondas que parecem embalar algumas aves que descansam sobre as águas.
O sol ainda não se escondeu, mas é uma larga mancha de cor laranja que se vai espalhando nas nuvens altas.
Elis canta "Mucuripe". Mas por aqui, não há velas, apenas cacilheiros.
Lá fora, começam a se acender os candeeiros.
O fim de tarde se vai tornando início de noite...
Agora, rodam os Archive com "Last five"...

sexta-feira, janeiro 02, 2004

Estréia



Para acabar o ano em beleza, nada como estrear uma livraria.
Livraria nova, perto de casa, entre a Gulbenkian e a já saudosa Librairie Française (com o seu encerramento, ficámos todos um pouco orfãos. Todos? Bem, quem tinha interesse em obras produzidas/editadas em França, ou em clássicos a preços bem mais simpáticos que aqueles que por aqui se vão praticando...) merecia uma segunda visita.
Claro, foi aqui, neste espaço blogosférico, que primeiro soube da sua existência. Quem passa na Avenida Miguel Bombarda, pode não se aperceber deste pequeno ninho (ninho porque é nos ninhos que surge a vida, e cada livro é uma nova vida...). Sem montra para o exterior, é apenas uma porta que se abre para a rua. É, pois, uma livraria discreta. Livraria Clepsidra. Preferia que fosse Clepsydra, em memória ao poeta Camilo Pessanha. Poeta este que, durante muitos anos, foi para mim apenas nome de rua, ali bem perto da Avenida do Brasil. Rua esta onde morava meu primo, companheiro de muitas brincadeiras e descobertas. Mas voltando ao poeta, só na adolescência ele nasceu para mim. Toda a sua obra se condensa nessa "Clepsydra". "Chorai, arcadas do violoncelo...". Mas agora não é hora do Pessanha. Em frente.
Entrei, pois, na Clepsydra (fica mesmo assim, neste jeito arcaico...), pela segunda vez. Hoje (bem, nesse dia), me senti bem mais confortado. Já não vi as prateleiras tão vazias. E, para mim, é desconfortável ver prateleiras vazias. Vazias de livros, claro.
A livraria não é muito grande. E não me parece que o seu objectivo seja vender "best-sellers". Creio que em seus objetivos está outro tipo de público. Como agora se diz, procuram um "nicho de mercado". Daí o equilíbrio entre a venda de livros novos e de livros em segunda mão. Mas que não se confunda esta livraria com um sebo! Com sorte, poderão aqui ser encontradas obras que já nem constem do catálogo da editora.
Meus olhos foram perambulando por entre as prateleiras, por entre as lombadas. Por vezes, puxava de um livro, abria, folheava, buscava o índice, folheava de novo, fechava, arrumava de novo no lugar.
Mas estrear uma livraria não é apenas entrar, olhar e sair. É também comprar. Depois da inclinação natural, senti-me "empurrado" a comprar o último romance de Mário de Carvalho: "Fantasia para dois coronéis e uma piscina", publicado pela Caminho. E me senti empurrado por Pedro Mexia, pela crítica que ele publicou no Diário de Notícias. Crítica esta resumida na edição do mesmo jornal de 30 de Dezembro: "Notável exercício de estilo e ironia, este romance exibe todas as reconhecidas qualidades de Mário de Cravalho, reelaborando de forma brilhante a noção de «realismo». (...) Além do mais, o retrato que traça desta nossa ditosa pátria palradora é implacável, dorido e justíssimo". (fim de citação)
Na minha primeira visita a esta livraria, se escutava Sérgio Godinho e seu "Irmão do Meio", onde algumas das suas músicas são revisitadas e reconstruídas com a ajuda de amigos de ambos os lados do Atlântico. (Paralelamente, se discutia a importância da voz do SG no contexto musical português. Putz! Para um dos melhores poetas de canções nacional, a voz é apenas um meio, não o fim...). Hoje (bem, nesse dia 31 de Dezembro), silêncio. Vencendo a minha timidez e comentando se não havia música, logo me foi dito que a aparelhagem estava com um pequeno problema. Felizmente, logo foi solucionado. E o som que surgiu me fez recuar vários anos. Até aos inícios dos
(neste momento, enquanto escrevo, vai passando uma moça na rua, de cabelo vermelho e de papagaio verde empoleirado no ombro. E não me parece ser a reencarnação do Long John Silver pois não tem perna de pau...)
anos oitenta (ou ainda final dos setenta?). Programa de rádio: "Pão comanteiga". Um dos melhores já alguma vez feitos nesta terra. Herbie Hancock tocava. Estou trauteando a música neste momento, mas não dá pra perceber, né?
O "Pão comanteiga", programa de rádio, deu ainda origem a dois livros, com alguns dos textos criados e lidos no programa, e a uma revista, que se aguentou, se bem me lembro, por pouco mais de um ano. Se esfuma em minha memória o nome dos constituintes deste projeto, mas não devo estar muito errado se falar em Carlos Cruz, Mário Zambujal, Bernardo Brito e Cunha (o BBC), Rolo Duarte (pai do Pedro Rolo Duarte), José Duarte (a voz mais importante do Jazz em Portugal e que pode ser encontrado aqui), José Fanha. Prometo em breve confirmar se esta lista está correta ou não...
Mas estou me desviando...
Ao som de Herbie Hancock paguei e me despedi, desejando um bom ano, que chegaria passadas algumas horas.
Assim, espero que comprar um livro, numa livraria nova, no último dia do ano, seja um bom augúrio para o ano que agora começa...
E como dizia o Rick: “Louis, I think this is the beginning of a beautiful friendship.”