quinta-feira, janeiro 15, 2004

Nacos de prosa, nacos de Portugal



Como já anteriormente referi, comprei um livro no último dia do ano. Numa livraria nova, a Clepsydra, e com um ótimo atendimento. Mário de Carvalho e a sua "Fantasia para dois coronéis e uma piscina". Um filme em forma de romance.

Como exemplo do gozo que me tem a sua leitura, deixo aqui dois nacos de prosa que são, também, um retrato deste país...

Assim começa:
"Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros. Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu do Monchique fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividades e más-criações.
Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e decibéis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão.
Falam os médicos, os notários, os empreiteiros, os varredores, os motoristas, os professores e toda a lista de profissões de estatística e não há corporação que fique de fora neste zunzunar do paleio, vendedores de automóveis, mediadores de seguros, sapateiros que passam a vida a cantar, empregados de mesa, agentes da autoridade, doentes dos hospitais, operadores imobiliários, empregados forenses, e também engenheiros, sem-abrigo, vagabundos, telefonistas, padeiros, patinadores, engraxadores e vândalos. Imigrantes provindos de países sombrios aprendem aqui a soltar as línguas, aderem ao velho ofício de dar à taramela, por isto e por aquilo, por tudo, nada. Passam-se dias, meses, anos, remoem as depressões, adejam os perigos e o país a falajar, falajar, falajar." (pp. 11 e 12)

E mais à frente:
"Entre a poeirada de adversidades que ensombram e inquinam a já de si pequenina qualidade de vida dos portugueses existe uma prática ilegal e, portanto, livremente exercida, chamada «estacionamento em segunda fila». Consiste em alinhar automóveis ao lado daqueles que já estão arrumados, bloqueando-lhes a saída. Em Portugal, em qualquer ocasião, sempre que ao olhar se oferece um bom lugar, é mister fazer-lhe a crítica e interrogá-lo extensamente. Há campo para sair pelo lado do passeio? Há espaço suficiente para?... Convém antecipar todas as malfeitorias aptas a impedir-nos de usar de um direito ou de uma facilidade. Porque é evidente que as circunstâncias da lusa vivência não consentem que um cidadão deixe o seu carro bem estacionado e vá, descansado, à sua vida. Isso seria demasiado simples. E a simpleza repugna aos portugueses. Deixar alguém na despreocupação? A fruir dos seus direitos? Isso é antilusitano. O bom cidadão deve sofrer a grosseria dos seus conterrâneos, sujeitar-se a ver todas as legítimas expectativas malogradas e guardar-se para a sua própria vez, quando tiver ocasião de tirar desforço e lesar triunfalmente a comodidade do próximo." (p. 53)

Continuarei com mais nacos, noutro dia...

Sem comentários: