domingo, julho 13, 2003

Alguns poemas



Os poemas que se seguem não têm endereço. Já o tiveram, um dia. Hoje, não têm mais.
São de um poeta que se chama Andrade. Mas que não é Carlos Drummond. É Eugénio. Eugénio de Andrade. Felizmente, ainda partilhando o mundo connosco. Felizmente, ainda podendo escrever mais poemas.
Estes, são poemas de amor, são poemas luminosos. Porque em dias cinzentos, por vezes, a luz dum poema pode brilhar mais que qualquer candeeiro aceso...

"Espera

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça."


"[sem título]

Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
o mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados."


"Vaguíssimo retrato

Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -

se a luz é tanta,
com se pode morrer?"


"Arte de navegar

Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro."


"O sorriso

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso."

É um génio de Andrade?

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